Presidida por aliado de Bolsonaro, ANPD fica à deriva no governo Lula
A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) está com sua atuação esvaziada desde a posse de Luis Inácio Lula da Silva. O principal sinal dessa paralisia foi a interrupção dos trabalhos do Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade (CNPD). Mas há outros sintomas.
No caso do CNPD, o organismo consultivo da agência está sem presidente desde 1º de janeiro, o que impede a convocação de reuniões para finalização dos projetos realizados por grupos temáticos. Embora plural, tem em sua composição aliados de Bolsonaro.
Cabe ao conselho supervisionar a atuação da autoridade. O organismo precisa ser ouvido para regulamentações futuras, como as que tratarem de anonimização de dados e terá voz na elaboração da Política Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade.
A ANPD chamou eleições para alterar a composição deste conselho, mas os impasses com o governo Lula, especialmente com o Ministério da Justiça, resultaram na falta de ânimo da sociedade civil em buscar as vagas que serão abertas em agosto.
Sem candidatos suficientes, a ANPD prorrogou o prazo da convocação de interessados nas vagas. Um cenário oposto ao visto em 2021, quando candidatos trocavam farpas e acusações na disputa pelas vagas.
O processo eleitoral para as vagas da sociedade do CNPD prevê que a agência faça listas tríplices dos candidatos e as envie para escolha do presidente Lula. Paira, no entanto, desconfiança de todos os lados.
Questão política
Fontes ouvidas pelo Tele.Síntese dizem que, para o governo, a ANPD foi aparelhada pelo bolsonarismo. Três dos cinco conselheiros diretores da autoridade são militares, inclusive o presidente, Waldemar Gonçalves, que tem mandato até 2026. O Coronel Arthur Pereira Sabbat era do GSI em 2020, quando foi indicado, e tem mandato até 2025. Joacil Basilio Rael tem mandato até 2024. Neste ano, termina o mandato da advogada Nairane Farias Rabelo Leitão, que vem tentando a recondução.
O governo teria de escolher nomes de listas elaboradas pela ANPD, cujos diretores são ligados à gestão passada, ou ignorar completamente as listas enviadas.
Patricia Peck, integrante do CNPD, manifesta abertamente suas preocupações. A seu ver, o conselho foi deixado de lado. “Até hoje, dois anos depois de sua criação, o CNPD não tem sistema próprio, não tem nem email”, conta.
Ela lembra que, sem o CNPD, a ANPD não pode regulamentar a anonimização, o que tem um efeito negativo sobre o setor público. “As licitações estão prejudicadas. A letargia impede que os editais de hospitais, de cidades inteligentes, por exemplo, tenham requisitos mínimos de criptografia e anomização porque há artigos ainda não regulamentados da LGPD e que dependem da consulta ao Conselho”, aponta.
Decreto
O governo diz que está sendo elaborado um decreto para redefinir a quem cabe a presidência do CNPD. Segundo o Ministério da Justiça, a partir disso, será então definido o novo presidente. O decreto não deve mexer na estrutura da ANPD.
“A pasta encaminhou minuta de decreto para alterar a presidência do Conselho Nacional de Proteção de Dados (CNPD) a fim de adequar o novo vínculo. O texto ainda está em tramitação no governo e encontra-se para análise no Ministério da Gestão e Inovação (MGI). Apenas após o decreto presidencial do texto, o Ministério da Justiça e Segurança Pública poderá indicar o presidente do Conselho”, informa.
Procurado, o MGI não respondeu até a publicação desta reportagem em que estágio de tramitação interna está o decreto.
Há expectativa de mais mudanças, porém. Na bolsa de apostas, pessoas próximas dos organismos acreditam na troca de representante do GSI por integrante de outra pasta.
Outros sintomas
Enquanto isso, outros sinais mostram que o governo não tem tido a melhor das relações com a ANPD. “Todos os debates do momento, como a regulação de inteligência artificial, o PL das Fake News, a regulação de criptoativos, envolvem privacidade, e a ANPD não tem sido chamada a opinar”, resume um observador.
Embora seja uma autarquia especial, o que lhe confere independência, a ANPD depende da estrutura do Ministério da Justiça e Segurança Públicas (MJSP) para funcionar. Assim, solicita apoio para participar de eventos e demanda servidores de outras áreas do governo.
O MJSP tem recusado aos diretores a participação em eventos internacionais sobre privacidade, vetando viagens.
A estrutura funcional da ANPD, ainda em criação, travou. Gonçalves solicitou ano passado a realização de concurso para contratação temporária de servidores. Chegou a ter o pedido aprovado, mas com a mudança de governo, os editais voltaram à estaca zero.
Interlocutores ouvidos, e que pediram para não serem identificados, temem que essa encruzilhada resulte em retrocesso nas relações entre o Brasil e Europa, de onde muito copiamos a legislação de privacidade de dados. E prejudique também a capacidade do país em influenciar outras nações nos debates internacionais sobre o tema.