WhatsApp: Justiça analisará adaptação de termos ao zero rating e sigilo da ANPD

Em ação bilionária contra a Meta, Idec e MPF apontam que detalhes sobre a política da plataforma consome dados móveis, ao contrário do mero “aceite” dos termos. Entidades propõem ainda novos parâmetros para restrição de informações em processos administrativos.
WhatsApp: Justiça analisará adaptação de termos ao zero rating e sigilo da ANPD
Foto: Freepik

O Instituto de Defesa de Consumidores (Idec) e o Ministério Público Federal (MPF) de São Paulo ingressaram nesta terça-feira, 16, com Ação Civil Pública no Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) contra a Política de Privacidade do WhatsApp no Brasil, sob a alegação de que a empresa estaria violando uma série de regras da legislação brasileira. O caso chama atenção pela multa de R$ 1,7 bilhão por danos aos consumidores, mas o processo reúne outros pedidos à Justiça, como eventual adaptação do procedimento de aceite dos termos de uso do aplicativo ao “zero rating” – que é o acesso sem consumo de dados – e eventual revisão dos critérios de sigilo dos processos administrativos da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), tomando como base a investigação que teve o app de mensagens como alvo.

As supostas violações decorrem da versão da Política de Privacidade do WhatsApp em vigor desde 2021, que prevê a utilização de diferentes informações dos consumidores para a oferta de produtos, o que incluiria o conteúdo das conversas privadas, segundo as entidades. Além disso, o aplicativo teria “forçado um consentimento, ao indicar como ‘alternativa’ à concordância com a nova política de privacidade a impossibilidade dos usuários de seguirem usando o aplicativo”.

O zero rating entra no debate como parte dos fatores que teriam favorecido um cenário de “coação”, como classificam as entidades, considerando o fato de que os detalhes sobre a política da plataforma e a possibilidade de rejeitá-las só seria possível a partir do redirecionamento para uma página que consome dados móveis, fora do aplicativo, ao contrário do mero “aceite” dos termos, que é sem custo (saiba mais abaixo). 

Na ação, as entidades argumentam, entre outros pontos, que o WhatApp não informou de forma clara, objetiva e direta, quais dados coletaria, e com quem e para que os compartilharia, com isso violou seus deveres de transparência, previstos da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), e afrontou o direito à informação de seus (ao menos) 150 milhões de usuários brasileiros, também ao contrário do que dispõe a LGPD e ainda o Marco Civil da Internet.

Conduta da ANPD

A política do WhatsApp foi alvo de investigações em diferentes países, entre eles, Itália, Argentina, Turquia e Índia. No Brasil, a ANPD se juntou à Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor), o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica ) e o MPF para uma resposta interinstitucional.

Uma nota conjunta emitida pelos órgãos recomendou, entre outros pontos, o adiamento da vigência da nova Política de Privacidade e a proibição de barrar os usuários que não aceitassem os novos termos, além de adequar o tratamento de dados à LGPD. Mas não teria sido cumprida integralmente, segundo o Idec e o MPF, ao contrário do que afirmou a empresa à época. 

Em maio de 2022, os órgãos anunciaram a conclusão do caso. Segundo nota divulgada pelo Cade à época, “após a realização do trabalho conjunto, a ANPD concluiu, por meio de nota técnica […], que o WhatsApp atendeu as recomendações e que as versões da política de privacidade de todas as ferramentas do aplicativo (WhatsApp Messenger, WhatsApp for Business e WhatsApp for Business – API) estão adequadas à LGPD. Contudo, determinou no documento alterações necessárias para que a política se torne mais clara e transparente para o usuário”.

Ainda de acordo com o Cade, a posição da ANPD foi levada em conta pelos demais órgãos. “Após avaliarem a nota técnica, os órgãos envolvidos manifestaram suas posições finais, observadas as respectivas competências institucionais, como forma de alinhar entendimento sobre o tema e ratificar o trabalho que foi desenvolvido”, afirmou. 

Contudo, a representação que chega à Justiça nesta semana detalha que tal nota da ANPD teria sido emitida em meio a uma “radical mudança de postura”, quando a Autoridade “passou a ignorar boa parte das análises que havia feito até então”, o que gerou uma “divergência interna” entre a Autoridade e membros do Ministério Público. O período envolveria adiamentos dos prazos de análise e o sigilo aos documentos do processo, enquanto o WhatsApp notificava os usuários a aderirem aos novos termos de uso, mesmo sob questionamento. 

Entre as últimas reuniões do quarteto de órgãos, segundo o MPF,  ficou acordado que a ANPD daria acesso, com prioridade, ao processo administrativo contra o WhatsApp no âmbito da Autoridade, o que ocorreu, em parte, apenas 15 dias antes do grupo assinar as considerações finais sobre o caso, em 20 de maio. No entanto, ao ler os autos, ainda não integralmente, os membros do MPF relatam que “de pronto discordaram de diversas conclusões a que chegou a ANPD”. 

As divergências e dificuldades para acesso aos documentos continuaram e também envolveram o Idec, principalmente após um desmembramento do processo na ANPD, conforme descreve o MPF. As negativas ocorriam “ora alegando supostos entraves técnicos para conceder acesso e compartilhar informações, ora aduzindo a suposta necessidade de consultar o WhatsApp antes de fazê-lo, ora, por fim, ventilando uma suposta impossibilidade jurídica de entregar documentos sigilosos”. 

“A ANPD acabou se comportando, à margem da legislação vigente, como se fosse imune à accountability pública”, opinam os autores.

Proposta de novos parâmetros

A ação pede que a Justiça Federal condene a ANPD a “no prazo máximo de 60 dias úteis, elaborar minuta de Resolução, no exercício de seu poder normativo, tendo por objeto regrar, de forma detalhada, a publicidade e a atribuição de sigilo para todos processos administrativos de sua alçada”, observando parâmetros pré-estabelecidos, entre eles:

  • prever que a publicidade é a regra e a atribuição de sigilo deverá sempre ser motivada por ato formal, com justificação concreta e específica que faça referência à alegação formulada pelo agente de tratamento para fundar sua pretensão de sigilo, e aos fundamentos de fato e de direito, que, para a ANPD, o autorizariam, sob pena de responsabilização funcional;
  • estabelecer distinção entre sigilo total e parcial, e dar a este último preferência expressa, de modo a garantir que apenas em último caso, em hipóteses excepcionalíssimas, processos administrativos ali em trâmite fiquem integralmente sem visibilidade pública;
  • prever expressamente um dever, da ANPD, de, nos casos em que decretado sigilo parcial de um processo administrativo, criar e disponibilizar, no prazo máximo de 10 dias úteis, uma versão pública, para consulta por parte de eventuais interessados; e
  • trazer definições objetivas capazes de nortear o enquadramento de informações constantes de processos administrativos em hipóteses de “sigilo comercial” e de “sigilo industrial”, de modo a evitar interpretações abusivas do disposto [na LGPD] e evitar que, como visto no caso WhatsApp, ele seja invocado para justificar, genericamente, a absoluta falta de acesso a feitos que estejam sob sua alçada. 

Em outras ocasiões, ao comentar a política de acesso às informações dos processos com a imprensa, a ANPD justificou ser criteriosa porque uma das sanções previstas na LGPD é a publicização do caso. Inicialmente, a Autoridade não divulgaria nem mesmo as empresas em processo sancionatório, mas já flexibilizou parte da política desde então.

Outro lado

Questionada pelo Tele.Síntese sobre a Ação Civil Pública,  a ANPD informou no final desta tarde que não havia sido notificada até então. Contudo, sobre sua conduta para o acesso às informações dos processos administrativos ressalta que “restringe o acesso a documentos somente quando é obrigada por lei. Quando não há exigência legal para restringir acesso, a regra é a publicidade”.

“Especificamente no caso citado [do WhatsApp], algumas informações foram restritas com base no art. 55-J, II da LGPD. O dispositivo determina que a ANPD zele pela observância dos segredos comercial e industrial e das informações protegidas por lei. Todos os documentos e trechos que foram protegidos foram objeto de solicitação pela empresa com fundamento em dispositivos legais existentes. Os trechos que não se enquadram na hipótese legal estão públicos. Adicionalmente, a ANPD publicou em 11/05/2022, uma notícia explicando como foi a atuação da ANPD no caso, divulgando em transparência ativa os principais documentos”, afirma a Autoridade em nota à reportagem.

Por fim, a ANPD  ressalta que “disponibiliza acesso aos documentos públicos do processo a qualquer cidadão, mediante pedido de acesso a informação (LAI)”.

Zero rating

Ao contextualizar o impacto das Políticas de Privacidade do WhatsApp no Brasil, o Idec e o MPF destacam na representação que parte do teor coercitivo da adesão aos novos termos de uso se deu em decorrência do “zero rating” que é o uso do aplicativo sem consumo de dados, oferecido pelas operadoras de telecom. 

“[…] para entender melhor o conteúdo das mudanças promovidas, era preciso sair do aplicativo, o que também gerava um incentivo à aceitação das mudanças, seja pela percepção subjetiva de que a mudança de aplicativos tomaria muito tempo, seja porque, no Brasil, muitas operadoras oferecem pacotes de “zero rating”, em que conteúdos acessados via WhatsApp não consomem créditos de telefonia móvel, mas conteúdos acessados via navegadores de páginas da internet, sim. Nesse último caso, não se pode sequer ignorar que muitas pessoas, à época, tinham créditos para acessar a caixa que aparecia no WhatsApp, mas não para acessar as páginas com as informações da nova política de privacidade, e acabavam aceitando as mudanças sem terem ciência de seu conteúdo”, alerta o documento.

As entidades ressaltam ainda que existe uma “decisão” de ofertar aos usuários a possibilidade de oposição a tratamentos de seus dados somente em páginas da internet fora do aplicativo, o que “limita severamente o exercício desse direito”.

Diante do cenário, uma das solicitações das entidades no processo visa “obrigar o WhatsApp a implementar funcionalidades adequadas de opt-out [cancelar adesão], que garantam a seus usuários interessados o exercício pleno tanto de seu direito de oposição a tratamentos indevidos, quando de seu direito de revogação de consentimento, em face da política de privacidade de 2021”. 

Acesse a íntegra da representação neste link.

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Carolina Cruz

Repórter com trajetória em redações da Rede Globo e Grupo Cofina. Atualmente na cobertura de telecom nos Três Poderes, em Brasília, e da inovação, onde ela estiver.

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