Polido: Brasil precisa ter práticas mais ambiciosas em inteligência artificial

A regulação tecnológica em marcha nos poderes Executivo e Legislativo caminha no rumo certo para travar ainda mais o Brasil. 

*Por Fabricio Bertini Pasquot Polido

A intensa corrida pelo desenvolvimento de modelos de negócios e de padrões de concorrência na indústria 4.0 e seus mercados digitais pressiona atores estatais e não estatais para a concretização de ações, estratégias e projetos baseados em premissas de transformação digital aliadas ao desenvolvimento industrial, científico e tecnológico em escala global.

Mas a regulação tecnológica em marcha nos poderes Executivo e Legislativo caminha no rumo certo para travar ainda mais o Brasil.

O potencial doméstico para exploração de oportunidades nas indústrias de tecnologias aplicadas à inteligência artificial está associado à construção de um quadro normativo sofisticado que compreende leis e regulamentos nacionais e instrumentos internacionais, como aqueles adotados no âmbito das Nações Unidas, da OCDE, da Organização Mundial da Propriedade Intelectual, da União Internacional das Telecomunicações.

A vida prática do Marco Civil e a expectativa de entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados também forçam novos comportamentos de agentes de governo, indústria e organizações especialmente quanto a programas de compliance digital, capacitação e assistência técnica, engajamento em negociações complexas, solução de litígios (no Judiciário ou fora dele) e intervenção em processos de elaboração normativa dentro e fora do Brasil. E riscos, desafios e oportunidades povoam essas múltiplas vertentes.

Regras para a inteligência artificial

Em dezembro de 2019, o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) abriu consulta pública para definir a chamada “Estratégia Nacional de Inteligência Artificial”, que teria o objetivo mais amplo de “solucionar problemas concretos do país, identificando áreas prioritárias no desenvolvimento e uso das tecnologias relacionadas a IA nas quais há maior potencial de obtenção de benefícios”. A chamada permaneceu aberta por apenas aproximados 45 dias, tempo exíguo para qualquer intervenção técnica e especializada de atores relevantes e mesmo outros agentes governamentais. Resultado pífio até 31 de janeiro, três dias antes do prazo final: 138 contribuições de 33 autores, dos quais apenas quatro assinam como entidades, deixando muitas perguntas sem respostas.

Expressamente, o texto preparatório da consulta faz referência à prioridade dada para IA na Estratégia Brasileira para a Transformação Digital (E-Digital), introduzida ainda no governo do ex-presidente Michel Temer com a edição do Decreto n. 9.319/2018. Para o MCTIC, seguindo em larga medida iniciativas temáticas gestadas na OCDE e na União Europeia, a discussão poderia ser dividida em três eixos transversais (legislação, regulação e uso ético; Governança de IA; e aspectos internacionais) e seis eixos verticais (educação; força de trabalho capacitação; Pesquisa, Desenvolvimento & Inovação (PD&I) e empreendedorismo; aplicação nos setores produtivos; no poder público; segurança pública).

Subjacente a qualquer idealismo da proposta, o governo brasileiro acena para uma pressuposição geral, em seu texto introdutório à consulta, de que “IA pode trazer ganhos na promoção da competitividade e no aumento da produtividade brasileira, na prestação de serviços públicos, na melhoria da qualidade de vida das pessoas e na redução das desigualdades sociais, dentre outros”.

Por ocasião de um artigo de revisão, explorei as dificuldades de países em empreender a corrida regulatória na batalha da inteligência artificial. Primeiramente, o tema não poderia ficar concentrado apenas em promessas relacionadas à transformação digital (desde desenvolvimento e inovação em novos modelos de negócios, especialmente soluções digitais para demandas tradicionais nas esferas de governo, economia, mercado de trabalho, educação, medicina, artes, comunicação e assim por diante).

A prospecção em CT&I – presente em universidades, laboratórios e centros de pesquisa – sobre sistemas autônomos e inteligentes e seus entrelaçamentos com indústria e sociedade, assim como entes de IA na vida humana, saúde, meio ambiente, comércio é que permitem tomada de decisões por governos, empresas e organizações. Recentes debates no Brasil, contudo, simplificam IA em ‘carros autônomos’, ‘robôs’ e – acreditem os leitores! – ‘algoritmos’.

Canadá, China, Estados Unidos, Índia e Reino Unido, aproveitam os centros de pesquisas e de excelência já existentes ou estabeleceram novos em instituições consolidadas; incentivaram celeiros de integração governo-indústria-academia; elevaram investimentos públicos e alocação de recursos orçamentários para CT&I aplicados a estudos e experimentos em IA.

Além dessa fórmula realista, a solução mais urgente para o Brasil seria a de integrar suas instituições aos atores da “governança global de IA”, centrada, dentre outros, em: (i) intercâmbio de informação e de conhecimento, (ii) legitimidade das formas de interação multissetorial, (iii) debate democrático sobre escolhas de regulação; (iv) interdependência e fertilização cruzada entre regimes normativos vis-à-vis interesses nacionais.

Restaria, pois, saber se a Estratégia Nacional de IA modificaria a posição do país na retaguarda do desenvolvimento industrial e tecnológico.

Legislativo

Talvez sem entender muito ainda bem do que se trata, parlamentares brasileiros correram para entabular iniciativas de leis sobre IA. Estamos agora a nos aventurar em direção à corrida regulatória a partir da dimensão normativa, mas sem muito ao certo saber se lograremos qualquer estágio de desenvolvimento na área.

Não é novidade entre nós, com experimentos parecidos sob modelos legais transplantados (e.g. leis de mercado de capitais, telecomunicações, propriedade intelectual, combate à corrupção). Mas as razões para prosseguir seriam várias para nosso Legislativo. Elas vão desde a precaução emergente quanto à convivência humana com entes autônomos e inteligentes, passando pela resposta institucional para atender aos Princípios da OCDE sobre IA de 2019 (aos quais o Brasil aderiu) até chegar à “segurança jurídica” para investimentos em pesquisa e desenvolvimento de produtos e serviços, sistemas operacionais, robôs e equipamentos que empregam IA:

  • Projeto de Lei n. 5051/19, de autoria do senador Styvenson Valentim (Podemos/RN), que propõe estabelecer os princípios para o uso da Inteligência Artificial no Brasil, dentre os quais o desenvolvimento inclusivo e sustentável; o respeito à ética, aos direitos humanos, aos valores democráticos e à diversidade; proteção da privacidade e dos dados pessoais; e transparência, segurança e confiabilidade;
  • Projeto de Lei n. 5.691/2019, também de autoria do Senador Styvenson Valentim, que dispõe sobre “Política Nacional de Inteligência Artificial”, para “estimular a formação de um ambiente favorável ao desenvolvimento de tecnologias” na área;
  • Projeto de Lei n. 21/2020, de autoria do Deputado Eduardo Bismarck (PDT-CE), que que objetiva “adequar o país aos princípios éticos da nova tecnologia” e “incentivar a inovação na gestão pública por meio de IA”;
  • Projeto de Lei n. 240/2020, de autoria do Deputado Léo Moraes (PODE-RO), que cria a “Lei da Inteligência Artificial”, e dá outras providências.

Parece que a árvore legislativa sobre IA começa nascer no Congresso (ainda não tem flores ou frutos) sem reforço de debate público, sem que se perceba tudo quanto outros países e mesmo as organizações internacionais já perceberam. As escolhas de regulação ou codificação legal que busquem definir IA, estabelecer campos de aplicação para entes autônomos e inteligentes ou mesmo fixar responsabilidades de desenvolvedores, supervisores ou operadores, não podem prescindir de discussões sobre a formação humana, potenciais educacionais, investimentos em pesquisa e os dilemas éticos e morais em segmentos da saúde, medicina, meio ambiente e agricultura, comércio, alimentação, segurança pública etc.

As narrativas das proposições legislativas e da consulta pública não poderão, evidentemente, permanecer em digressões sobre “benefícios e riscos” “produtividade na indústria e qualidade em serviços”, “regulação mínima”, “responsabilidade por danos decorrentes de sistemas de inteligência artificial”. Eles devem reconhecer, sim, as experiências advindas de grandes parques tecnológicos e de inovação tão cobiçados pelo Brasil, como os existentes na União Europeia, China, Coreia do Sul, Japão e Estados Unidos, mas nunca desdenhar da frágil realidade em que o campo exploratório se encontra no país, com raríssimas exceções. Dito de forma didática: é a hora de se fazer a lição de casa.

A OCDE, assim como a União Europeia, claramente recomenda uma série de ações, como investimentos prioritários em “pesquisa e desenvolvimento em IA”, a promoção de ambiente favorável para inovação em IA, em que atividade criativa e inventiva possam estar associadas ao design e aplicação de entes autônomos e inteligentes e voltados para demandas sociais, a capacitação do trabalho humano e instrumentos de cooperação internacional para “IA confiável”.

Não bastariam, portanto, medidas para legislar ou ‘cartorializar’ o uso de IA no setor público com intuito de aperfeiçoar serviços aos cidadãos. Isso porque faltariam outros instrumentos de indução, fomento, estímulos para que as aplicações de IA possam ser desenvolvidas no Brasil pela indústria de base tecnológica, por parcerias público-privadas e em outras frentes, como nas indústrias de internet e TICs.

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*Fabricio Polido é Doutor em Direito Internacional e Comparado pela Universidade de São Paulo – USP. Professor Adjunto de Direito Internacional Privado, Direito Internacional da Propriedade Intelectual, Solução Internacional de Disputas em Novas Tecnologias da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Foi pesquisador visitante do Instituto Max-Planck de Direito Internacional Privado e Comparado/Hamburgo (2012), da Universidade de Kent, Reino Unido (2018) e da Faculdade de Direito da Universidade Humboldt de Berlim (2019). Advogado e Consultor.
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