Vianna: O fair share, as teles e os provedores regionais
Por Fabio Vianna Coelho (*) – A argumentação das grandes operadoras de telecomunicações de que as chamadas Big Techs – notoriamente YouTube, Netflix e outras que operam com base na transmissão de grandes volumes de dados – devem colaborar com a expansão de suas redes (o chamado fair share) ganhou novos contornos na última edição do Mobile Word Congress, realizado em Barcelona no final de fevereiro. O tom algo indignado sobre receitas fantásticas geradas, em tese, sem contrapartidas a partir do uso de suas infraestruturas deu lugar a um discurso sobre a importância de tornar a indústria sustentável. Porta-vozes de grandes grupos abordaram a preocupação com o consumo energético excessivo, dentre outros, de data centers ou mesmo da transmissão de conteúdos audiovisuais, o que, no final, soa como o uso de princípios da agenda ESG para, de forma menos enfática, apontar a necessidade de que empresas de Internet não tenham mais a produção de conteúdo como destino exclusivo de seus investimentos.
Já no Brasil, o pleito das teles pela adoção do chamado fair share segue inalterado e, além de motivar discussões na Anatel, sensibilizou o ministro Juscelino Filho, que promete um Projeto de Lei com a criação de uma taxa para que as plataformas digitais colaborem com a inclusão digital. Há uma série de fatores a serem analisados para que se saiba quem têm razão nessas discussões e o que poderá acontecer num futuro breve, conforme a legislação e como as empresas envolvidas operam de fato.
Sobre o último, a Abrint trouxe, ainda no MWC, duas realidades do mercado. Uma delas se contrapõe ao argumento da Conexis, que reúne as teles brasileiras, de que 80% do tráfego das redes móveis seriam consumidos pela transmissão de conteúdo das big techs. Como observado por Basílio Perez, conselheiro da entidade, 85% dessa transmissão se dá, na verdade, por redes fixas, via Wi-Fi, algo bastante verossímil para qualquer um que observar seus próprios hábitos de navegação.
Outro ponto abordado por Perez é ainda mais notório para os provedores. Conforme o conselheiro, a associação realizará um levantamento para a Anatel sobre o número de CDN (Content Delivery Network – rede de entrega de conteúdo, em tradução livre) em operação no país o qual, se relevante, iria contra a alegação das teles de que as plataformas digitais consumem a maior parte de sua capacidade de transmissão.
CDNs são, na prática, servidores em que big techs armazenam parte significativa de seus portfólios para disponibilizá-los nas redes de provedores. São muito desejadas por ISPs. Quando estes registram determinado volume de tráfego nessas plataformas, elas os procuram ofertando a instalação desses servidores em suas redes. Além de proporcionar maior qualidade e agilidade de acesso para o consumidor final, a oferta representa uma economia significativa para os ISPs, que arcarão, basicamente, com os custos com energia elétrica do equipamento, gastando muito menos do que desembolsariam na compra de links necessários para a transmissão de conteúdos audiovisuais.
Se é sonho para ISPs, as CDNs já são realidade para grandes operadoras em todo o mundo há muito tempo. Mas isso não reduziu os temores de um colapso da Web durante a pandemia. Em 2020, atendendo a solicitação da União Europeia, as principais plataformas de streaming reduziram a definição de seus vídeos no velho continente – o YouTube o fez em todo o mundo –, a fim de evitar que a Internet parasse, por conta do excessivo tráfego de dados resultante do isolamento social.
Os temores quanto à capacidade de transmissão das redes diante de um volume de dados em contínuo crescimento são mais antigos. Em 2008, o então vice-presidente de assuntos regulatórios da AT&T, Jim Cicconi, afirmava que dali a dois anos a Internet iria parar por conta de excessivos downloads e uploads de imagens e conteúdos audiovisuais. Até agora, isso não aconteceu.
Fato é que o consumo de dados irá crescer e demandará maior capacidade de transmissão. As grandes operadoras, donas das maiores redes, registram, apesar de resultados expressivos, uma lucratividade que não acompanha o nível de investimentos que o cenário impõe. E, enquanto as big techs atribuem às suas oferta – produzidas às custas de grandes aportes – a atratividade da Internet, há obstáculos legais – que poderão ser revistos – para que haja alguma cobrança relativa ao uso excessivo da infraestrutura das operadoras pelos chamados heavy users.
Essas discussões envolvem grandes grupos a partir de um cenário existente e projeções que são unânimes ao apontar que a Internet é e será ainda mais uma das principais forças motrizes, não só da economia, mas da humanidade como um todo. Se nos últimos anos incontáveis aparelhos tornaram-se obsoletos ao terem suas funções incorporadas por smart phones e todo conteúdo informativo e de entretenimento migrou para a Internet – câmeras que, além de registrar, transmitem fotos e vídeos, podcasts que levaram entrevistas e expectadores das redes de TV e rádio para perfis no YouTube, a incorporação de grande parte da programação televisiva por plataformas online etc. –, o momento atual é o da popularização de soluções de Inteligência Artificial, como o chat GPT, outro fator que sobrecarrega a infraestrutura da Web. Adiante, surgirão outros.
Apesar do posicionamento da Abrint, os provedores regionais, citados no título deste artigo, ficam, na prática, fora dessas discussões, até porque têm em mente outras urgências. O principal motor de sua expansão nos últimos anos, a demanda por novas conexões de banda larga, segue em queda, reduzindo margens, enquanto a concorrência crescente passa a ser exercida por competidores de maior porte, surgidos a partir da concentração de mercado. Conforme a última edição da pesquisa TIC Provedores, divulgada pelo Cetic.br em dezembro, entre 2020 e 2022, enquanto o número de ISPs em atividade teve leve recuo, indo de 12.826 para 11.630, o percentual de empresas de médio porte – 50 a 249 funcionários – foi de 13% para 17%. Já as micro – com até 9 trabalhadores –, caiu de 56% para 46%.
Ocorre que, se hoje a concorrência é mais intensa e não é mais possível conquistar expansão com base apenas na oferta de acessos, existe a certeza de que a Internet terá importância crescente, e é neste mercado que essas empresas estão posicionadas. A velocidade das conexões demandadas irá crescer a partir do consumo de conteúdos audiovisuais e outras soluções disponibilizadas ao consumidor final a partir da transmissão de grandes volumes de dados. Se as empresas têm dificuldade para conquistar novos clientes, existe a possibilidade clara de aumentar seus tickets médios com novas ofertas aos que já estão em suas carteiras. Isso, obviamente, se eles estiverem satisfeitos com os serviços contratados hoje.
A fidelização torna-se determinante para saber quais provedores permanecerão no mercado. Para conquistá-la, deve haver excelência na prestação dos serviços e no atendimento, algo que só pode ser alcançado por empresas bem geridas. Há ferramentas disponíveis no mercado que facilitam o monitoramento de indicadores de qualidade, satisfação dos clientes e a operação como um todo. Gestores que pretendem seguir por esse caminho devem observar, para além do atendimento, o que pode tornar seus ISPs mais atrativos para potenciais compradores, por exemplo, o cumprimento de suas obrigações fiscais e regulatórias, a fim de eliminar eventuais passivos.
Apesar de as teles estarem intensificando a instalação de redes de fibra óptica, a tecnologia permanece concentrada na infraestrutura dos ISPs. Depreende-se, assim, que, para a maior parte desses provedores, os investimentos a serem realizados se referem mais à ampliação de seus portfólios e aumento da qualidade de seus serviços do que à aquisição de equipamentos. Manter a casa arrumada e o cliente fidelizado é o que garantirá a permanência em um mercado que, mesmo em transformação, continuará a crescer.
(*) Fabio Vianna Coelho é sócio da VianaTel, consultoria especializada na regularização de ISPs, e do RadiusNet, software de gestão para provedores de Internet.
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