Tribunais no Brasil precisam garantir direito de defesa sobre patentes de telecom, diz executivo da Ericsson

Ícaro Leonardo da Silva, brasileiro diretor de Patentes da multinacional sueca, aponta que há movimento no País para driblar pagamento de royalties pelo uso de propriedades intelectuais de redes móveis; defende um único padrão para o 6G no mundo e indica que ainda é cedo para definir soluções da sexta geração
Judiciário precisa assegurar direito das patentes de telecom, diz diretor da Ericsson
Ícaro Leonardo da Silva, diretor de Patentes da Ericsson, alerta sobre investida contra propriedades intelectuais de telecom no País (crédito: Ericsson Brasil/Divulgação)

O Poder Judiciário brasileiro precisa garantir que as empresas desenvolvedoras de tecnologias relacionadas à indústria de telecomunicações tenham seus direitos de proteção assegurados. Do contrário, amplia-se o risco de afugentar o registro de inovações no País e de mitigar o ambiente inventivo, afirma o diretor de Patentes da Ericsson, o brasileiro Ícaro Leonardo da Silva.

Em entrevista ao Tele.Síntese, o pesquisador que participou do processo de padronização do 5G indica que, embora os tribunais e as empresas do setor jurídico estejam ampliando o conhecimento sobre propriedades intelectuais de comunicação, as quais têm a particularidade de serem instrumentos de conectividade entre dois dispositivos (um smartphone e uma estação rádio base, por exemplo), há escritórios que trabalham na direção contrária, no sentido da postergação ou até mesmo não pagamento dos royalties.

“Se o Brasil quer ser protagonista [nos setores móvel e fixo], é preciso que garanta esse tipo de mecanismo. A partir do momento que não garantir, vamos tornar a nossa indústria de telecom irrelevante”, pontuou o executivo, durante passagem pelo Brasil, na semana passada – ele fica locado nos escritórios da Ericsson na Suécia.

Na entrevista, Silva também salienta que o que assegura as pesquisas da próxima geração móvel são os licenciamentos da atual tecnologia. No caso do 6G, defende que o mundo tenha apenas um padrão, de modo a evitar rupturas que encareçam processos de desenvolvimento e comprometam o retorno dos estudos, tendo em vista que parte significativa das potenciais invenções não entra na padronização geracional.

Em dúvida se participará da formalização do 6G, o pesquisador também diz que ainda é cedo para cravar quais tecnologias integração a sexta geração móvel, mas aponta que se faça um provável uso mais consistente de Inteligência Artificial (IA), realidade aumentada (AR) e realidade virtual (XR), além do metaverso.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.

Tele.Síntese: Como funciona a indústria de desenvolvimento de patentes de telecomunicações?

Ícaro Leonardo da Silva: Em primeiro lugar, é preciso entender que a patente é um documento que captura uma solução tecnológica. No caso da Ericsson e de outras empresas da indústria de telecom, elas têm seus centros de pesquisa e desenvolvimento que buscam soluções para problemas que a indústria reconheceu como relevantes para a sociedade. Para isso, investimos bastante. Algumas dessas ideias acontecem na prática, outras não. Então, há uma espécie de risco que corremos por investir em pesquisa. Quando encontramos soluções interessantes, tentamos nos proteger através de patentes, reivindicando a solução.

A questão das patentes com sistemas celulares é que elas contêm soluções que eventualmente passam a fazer parte do sistema, de modo que todo smartphone precisa implementar essas patentes para se comunicar com as estações rádio base. Então, entra-se num processo de negociação de licenciamento.

Para fechar o ciclo, pegamos os royalties e reinvestimos em pesquisa e desenvolvimento. Costumo dizer que a pesquisa de hoje se torna uma patente amanhã, que vira parte do padrão licenciado no dia seguinte. Isso se torna um investimento para as próximas pesquisas. Então, o 5G só existe por conta do licenciamento do 4G.

Tele.Síntese: Você participou da padronização do 5G. O que você destacaria daquele processo?

Silva: Acho que tem uma especificidade do 5G comparado com os outros sistemas que é a ambição de ser aplicado para a indústria. É a ideia de substituir uma planta de uma fábrica que hoje é conectada através de cabos ou de outras tecnologias de espectro compartilhado pela comunicação celular. No que diz respeito aos casos de uso, em particular, acho bastante interessante a tecnologia celular aplicada no agro, porque exige uma cobertura grande e mobilidade.

Tele.Síntese: Em mercados em que o 5G está à disposição há mais tempo do que aqui no Brasil, a tecnologia já tem sido utilizada com eficiência?

Silva: Sim. A Europa, por exemplo, se, por um lado, não está tão desenvolvida na parte dos smartphones, a parte industrial tem vários projetos relacionados às aplicações do 5G. Também há alguns projetos nos Estados Unidos. Os desafios mais claros não são sobre a tecnologia si, mas os modelos de negócios – se a rede vai ser uma rede privada, se vai ser uma rede de um operador tradicional móvel que vai conceder uma parte da frequência para uma determinada fábrica, ou se as frequências serão concedidas para a própria fábrica. Então, existe um processo de se encontrar o melhor modelo de negócios.

Tele.Síntese: Você poderia falar sobre como estão as pesquisas sobre 6G e quais soluções serão viabilizadas na próxima geração?

Silva: A indústria trabalha com ciclos de inovação a cada dez anos. Então, 2030, em tese, seria o ano de sistemas comerciais [de 6G], mas ainda está sendo debatido. Para se ter sistemas comerciais nesse período, você começa a fazer a linha do tempo reversa. Alguns anos antes, é preciso desenvolver o padrão, todo o sistema de comunicação entre smartphones e uma rede celular. As discussões precisam ser encerradas alguns anos antes. Ao voltar mais para trás ainda, há o período de pesquisa. Então, até 2026 e 2027, o que se faz são pesquisas.

O consumidor final e até mesmo a imprensa não ouvem falar disso porque, do ponto de vista comercial, não faz sentido falar em 6G ainda. É muito especulativo falar que alguma empresa desenvolveu uma solução em 6G, porque é uma referência que não existe ainda. Com relação às tecnologias, é um pouco cedo para bater o martelo, mas há apostas, como Inteligência Artificial (IA) integrada aos sistemas celulares, realidade virtual (VR), realidade aumentada (AR), o uso da rede para o conceito de metaverso. Mas ainda é cedo para dizer que isso vai ser parte do 6G, porque esse processo ocorre durante a padronização.

Tele.Síntese: Então, antes da padronização, não existe propriedade intelectual de 6G, certo?

Silva: É uma pergunta interessante. Existe propriedade intelectual a todo e qualquer momento. A questão de se é 6G ou não é que durante um tempo existe a incerteza sobre aquilo ser 6G ou não. Então, se desenvolvo uma aplicação visionando que pode fazer parte do 6G, às vezes, no documento da patente, escrevo alguma coisa nesse sentido. No entanto, se realmente vai ser parte, isso só será decidido no futuro, quando a padronização começar.

Tele.Síntese: E você vai participar da padronização do 6G?

Silva: Não sei responder isso ainda. Existe uma negociação em andamento com a minha mulher e os gerentes da Ericsson, porque a demanda de viagens é grande. É um tempo estressante. É possível que sim, mas não posso confirmar ainda.

Tele.Síntese: Como você avalia o risco de disputas geopolíticas atrapalharem a definição de um padrão global para o 6G?

Silva: Acredito que parte do sucesso das nossas tecnologias vem do fato de trabalharmos com sistemas globais. Quando começaram essas discussões geopolíticas, como eu havia trabalhado na padronização do 5G, entendia que havia um equívoco na forma como isso é reportado. E parte do sucesso do sistema se deve à economia de escala, que permite construir um equipamento para vendê-lo para diferentes mercados. A alocação das frequências, de certa forma, é governada por diferentes países, mas há uma tentativa de harmonizá-las para que os equipamentos tenham economias de escala.

Se você fragmenta, será preciso, por exemplo, dividir os engenheiros em três grupos para trabalhar em três padrões. Perde-se uma massa crítica de cérebro pensante, tem que criar três linhas de produção, o custo vai lá para cima. Ou seja, é ruim para todo mundo. Seria uma decisão puramente política com benefícios questionáveis. Essa é uma posição não só da Ericsson, mas de qualquer um que esteja na indústria de telecom nos últimos 20 anos.

Tele.Síntese: As disputas geopolíticas influenciam o trabalho dos pesquisadores, no sentido de que as patentes desenvolvidas fiquem com uma fatia maior do mercado?

Silva: É importante entender que a patente é um reflexo do investimento em pesquisa e desenvolvimento. No grupo, o 3GPP, não conversamos sobre as patentes, mas sobre as tecnologias, visando encontrar um sistema com as melhores soluções. Então, é um equívoco pensar que, no momento da padronização, há uma discussão sobre qual patente vai entrar. Isso não acontece. Nós, engenheiros, nem sequer falamos sobre patentes, só sobre problemas e soluções, tentando chegar a um consenso para o sistema.

Tele.Síntese: Como funciona o financiamento de patentes?

Silva: Existem duas lógicas relacionadas a patentes. A primeira é de proteger e não deixar ninguém usar. Entretanto, no caso de telecom, em particular as patentes essenciais, é um pouco diferente, porque se trata de uma patente de comunicação. É uma tecnologia que visa que um terminal se comunique com a torre. Então, o objetivo é licenciar para que outros possam desenvolver produtos utilizando essas patentes – só que essa tecnologia ainda é minha. Investi em pesquisa e desenvolvimento, parte deu certo, parte não deu. A parte que deu é licenciada com a expectativa de retorno justo para financiar as pesquisas posteriores.

Tele.Síntese: Como isso se aplica no Brasil?

Silva: Há uma questão sensível: os mecanismos das cortes brasileiras para que um detentor de uma patente essencial tenha o direito de procurá-las quando se sentir lesado. Pode haver um processo de negociação e algumas empresas tentem não pagar os valores que entendemos ser justos. Então, em alguns cenários, precisamos procurar as cortes brasileiras, que têm concedido liminares a partir do momento que há evidências do infringimento dessas patentes. Sem esse mecanismo de defesa, o próprio processo de ter patentes no Brasil perde o seu valor.

Tele.Síntese: Com base na sua observação dentro da Ericsson, o Brasil é um território amigável às patentes de telecomunicações?

Silva: O Brasil é relativamente amigável e tem recebido [registros de patentes] por ser um mercado grande e por ter fábricas de equipamentos. O País tem se tornado mais atrativo, porque os juízes têm aprendido, cada vez mais, sobre o assunto. Tem crescido o número de pessoas lidando com essas questões e o debate público tem avançado. Se o Brasil quer ser protagonista, é preciso que garanta esse tipo de mecanismo. A partir do momento que não garantir, vamos tornar a nossa indústria de telecom irrelevante.

Tele.Síntese: Houve um amadurecimento dos tribunais?

Silva: Existe muita gente bem intencionada de todas as direções para que esse processe se acelere, mas temos muita coisa para caminhar. Essa questão dos mecanismos de proteção, tento falar bastante sobre isso, porque sinto que há um movimento na outra direção, perigoso para a inovação. E vem de empresas que deveriam estar estimulando a inovação.

Tele.Síntese: Quais são as empresas que geram esses conflitos?

Silva: Às vezes, são fabricantes e firmas de advocacia que eventualmente tem uma mensagem que visa a dificultar os processos de defesa de quem detém patentes essenciais. Eles são o outro lado da negociação e precisam pagar os royalties. Então, às vezes, escuta-se algumas narrativas que tentam dificultar o outro lado, para que passe o maior tempo possível sem pagar royalties. Depois, trazem você de volta para a mesa de negociação para acertar royalties abaixo do valor razoável.

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Eduardo Vasconcelos

Jornalista e Economista

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