Revisão da Norma 4: incertezas e alternativas em jogo

Entre os argumentos contrários e favoráveis à manutenção da norma, orbitam interesses de grandes e pequenos prestadores de serviço. Veja o que diz cada lado.
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Enquanto o setor de telecomunicações discute a simplificação regulatória do serviço, um dos pontos mais controversos esbarra no envelhecimento das regras e trata das definições da prestação de conexão à internet: a Norma 4, editada pelo Ministério das Comunicações em 1995.

Criada em um cenário de internet discada, quando a conexão dependia de equipamentos de telefonia tradicional, a Norma 4 definiu o Serviço de Conexão à Internet (SCI) como um Serviço de Valor Adicionado (SVA), que dependia de um provedor de acesso, enquanto as operadoras ofereciam a infraestrutura.

Após 18 anos, com a popularidade cada vez maior da banda larga fixa, a Anatel editou a Resolução nº 614, de 28 de maio de 2013, que definiu uma segunda maneira de oferta: o Serviço de Comunicação Multimídia (SCM), definido como um “serviço fixo de telecomunicações” permitindo a prestação sem a necessidade de um provedor.

Foi mantendo a Norma 4 e a resolução simultaneamente que o debate se iniciou chegando até os dias atuais sem definição. Estudo apresentado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em 2019 destacou que “a distinção exata entre os diferentes serviços de comunicações no Brasil [incluindo SCMs e SVAs],  é sujeita a discussões e disputas legais entre empresas do setor e autoridades fiscais”, o que “leva à insegurança jurídica, assim como à arbitragem tributária e, como consequência, à perda de excedente econômico”.

“Para fins de tributos e convergência, então, o Brasil deve considerar um sistema de licenciamento unificado para eliminar a distinção entre serviços de comunicações e radiodifusão”, consta no estudo da OCDE.

Revisão da Norma 4 e tributação

No mesmo sentido da OCDE, a Análise de Impacto Regulatório (AIR) dos técnicos da Anatel sobre as possíveis mudanças na Norma 4 explica que a manutenção dos modelos envolve diferentes regimes tributários.

“A possibilidade de entrega de parte de mesmo produto (conexão à internet), tanto como um serviço de telecomunicações, quanto como um SVA, gera diversas incertezas e questionamentos jurídicos, uma vez que a natureza tributária dos dois é distinta na legislação brasileira. Enquanto sobre os serviços de telecomunicações incidem, por exemplo, o ICMS e as taxas e contribuições setoriais, o SVA sujeita-se ao ISS”, consta na nota.

A análise cita que “é comum se receber na Anatel demandas de órgãos arrecadadores estaduais questionando este formado regulatório, tendo em vista o impacto fiscal que se tem, enquadrando-se o provimento de conexão à internet como serviço de telecomunicações ou de valor adicionado”.

Além da arrecadação do poder público, os técnicos ressaltam que os impactos deste enquadramento tributário “dizem respeito aos preços cobrados dos consumidores ou mesmo ao poderio de investimento dos prestadores em expansão ou ampliação da capacidade de suas redes”.

Dois lados

A revisão da Norma 4 foi o tema mais comentado na consulta pública que trata da simplificação regulatória, que segue aberta para contribuições até 8 de agosto. Foram 45 contribuições recebidas pelo SACP e 15 por outros meios apenas sobre este tema. A opiniões estão divididas em dois grupos.

De acordo com a AIR, o primeiro grupo, em geral composto pelas prestadoras com grande poder de mercado, entidades de governo (incluindo o Ministério da Economia) e OCDE, “entende não ser mais adequada a aplicação da Norma 4 no sentido de permitir, a critério do prestador, que parte da conexão à internet seja feita por meio de SVA, uma vez que isso geraria vantagens tributárias e competitivas para somente uma parcela das prestadoras e, por consequência, tratamento não isonômico”.

Já o segundo grupo, composto em geral de prestadoras de pequeno porte e entidades da sociedade civil ligadas à internet, “é a favor de manter o status quo, alegando, inclusive, que a alteração da norma poderia ir de encontro aos conceitos do Marco Civil da Internet, impactaria a viabilidade financeira de uma parcela dos prestadores e fugiria das competências da Anatel”.

Os técnicos citam que os “pequenos prestadores se utilizam dos ditames da norma, apontando que parte do que entregam aos seus clientes é SVA, e por consequência não está sujeito ao ICMS e impostos setoriais. Com a supressão da norma, este cenário deixa de existir [passariam a estar sujeitos ao ICMS e impostos setoriais] e conteúdo pleno das ofertas passa a caracterizar serviço de telecomunicações”.

No entanto, a AIR questiona a falta de comprovação do impacto aos pequenos prestadores, além de ressaltar que parte é tributada pelo Simples Nacional e não seriam afetados. A nota também rebate a tese de o caso não está sob competência da Anatel.

“É importante esclarecer que se encontra dentro das competências legais da Anatel a revisão da Norma nº 4/1995, por ser esta um instrumento editado pelo Ministério das Comunicações que recai sob o comando do art. 214, inciso I, da LGT, o qual estabelece que os regulamentos, normas e demais regras em vigor serão gradativamente substituídos por regulamentação a ser editada pela Agência, em cumprimento a esta Lei”.

Visão do relator

O relator do tema, Moisés Queiroz Moreira, rejeitou a proposta da AIR, de substituir a Norma 4 e consolidar o serviço. Ao invés disso, acatou outras duas alternativas. Uma delas é iniciar um esforço para a definição dos limites do serviço de telecomunicação e do SVA.

Na análise, os técnicos apontaram que esta medida é de “extrema complexidade”. “Com os avanços tecnológicos das redes de telecomunicações, praticamente todos os elementos que eram utilizados somente para conexão à internet à época da concepção da Norma nº 4/1995 ou não são mais necessários ou foram incorporados por elementos nativos das redes de telecomunicações, o que torna muito complexo apontar um percentual (ou regras para definir um percentual) que delimite de forma adequada cada componente (SVA e SCM) na prestação de conexão à internet, ou mesmo concluir que algum percentual desta atuação não seja telecomunicações e, consequentemente, possa ser enquadrada como SVA”, consta na AIR.

A segunda alternativa acatada pelo relator é incentivar as fazendas públicas a reduzirem a diferença tributária entre serviços de telecomunicações e SVAs. Para tal, a AIR alertou que os estudos da OCDE “apontam como necessário, em longo prazo, buscar uma reforma fundamental da estrutura de tributos indiretos para reduzir distorções causadas pelo atual tratamento dado aos serviços de comunicação, o que vai ao encontro desta alternativa”.

Como meta, a Agenda Regulatória 2021-2022 da Anatel prevê a aprovação final do projeto de simplificação da regulamentação de serviços de telecomunicações ainda neste segundo semestre de 2022.

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Carolina Cruz

Repórter com trajetória em redações da Rede Globo e Grupo Cofina. Atualmente na cobertura de telecom nos Três Poderes, em Brasília, e da inovação, onde ela estiver.

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