Regras do Ministério da Justiça contra redes sociais dividem especialistas e parlamentares

Portaria assinada em meio a ações contra a violência nas escolas já motivou projeto que pede a suspensão da norma, por considerar invasão de Poderes. Divergência inclui também a aplicação do CDC ao conteúdo de terceiros.

(Foto: Freepik)

A imposição de regras para moderação de conteúdo em redes sociais por parte do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) acirrou ainda mais o debate acerca da responsabilidade das plataformas digitais frente ao conteúdo dos usuários. Parlamentares e especialistas estão divididos sobre a legalidade da medida. 

A legislação brasileira não tem norma específica para a moderação de conteúdo. Além disso, a definição de até que ponto as redes sociais devem ser punidas em caso de crimes praticados por meio delas é um tema em análise pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que buscou ouvir todos os lados envolvidos – incluindo Executivo, Legislativo, as próprias big techs e pesquisadores do direito –  para decidir sobre o caso, ainda sem data definida para conclusão. 

Em meio à lacuna, o próprio ministro da Justiça, Flávio Dino, afirmou em recente debate sobre o tema que houve um mal estar entre o Executivo e o Legislativo após o governo anunciar que editaria uma proposta de Medida Provisória com regras sobre fake news e moderação de conteúdos antidemocráticos, pois já existe um projeto com debate avançado no Congresso Nacional sobre o mesmo tema, o Projeto de Lei (PL) 2630/2020, com parecer substitutivo do deputado Orlando Silva (PCdoB/SP) concentrando mais de 80 propostas sobre o caso. Por fim, houve acordo para que o Congresso Nacional ficasse com o tema

No entanto,  na última quarta-feira, 12, após atentados que resultaram na morte de estudantes e professores em escolas brasileiras – inclusive, anunciados e fomentados em fóruns da internet e comunidades nas redes sociais – e diante das ameaças de novos ataques em diversas regiões do país, o MJSP decidiu se antecipar e editar a Portaria 351/2023, que obriga a remoção de conteúdos que incitam a violência, além de exigir agilidade no cumprimento de determinações que auxiliam as investigações dos criminosos. Desde então, alguns parlamentares e especialistas questionam o alcance das regras para além do tema da violência nas escolas e a legitimidade do órgão para tal.

O que diz a portaria

Ministro da Justiça, Flávio Dino, anuncia portaria contra plataformas digitais em 12 de abril | Foto: Valter Campanato/Agência Brasil.

A norma coloca a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), que é vinculada ao MJSP, como a responsável por conduzir processos contra as plataformas digitais, com base no entendimento de que as aplicações fornecidas pelas redes sociais configuram uma relação de consumo, com isso, a pasta teria competência para atuar no caso, inclusive, com sanções previstas no Código de Defesa do Consumidor (CDC), como multa e suspensão dos serviços. 

A portaria diz que a Senacon deverá “instaurar processo administrativo para apuração e responsabilização das plataformas de rede social, pelo eventual descumprimento do dever geral de segurança e de cuidado em relação à propagação de conteúdos ilícitos, danosos e nocivos, referentes a conteúdos que incentivem ataques contra ambiente escolar ou façam apologia e incitação a esses crimes ou a seus perpetradores”. 

Relatórios

A norma obriga as plataformas a apresentarem à Senacon um relatório sobre as medidas tomadas para fins de monitoramento, limitação e restrição dos conteúdos ilícitos em questão, além de cumprir medidas da secretaria para “limitar a propagação desses conteúdos” e desenvolver “protocolos para situações de crise”, além de “outras medidas cabíveis”.

O texto autoriza a Senacon a exigir uma “avaliação de riscos sistêmicos” das plataformas digitais, que deve considerar “os efeitos negativos, reais ou previsíveis, da propagação de conteúdos ilícitos”, sendo que, especialmente os casos que envolvem a incitação de violência nas escolas e que sejam nocivos a crianças e adolescentes.

A avaliação deve conter a descrição de como os seguintes fatores influenciam os riscos sistêmicos: 

  • a concepção dos seus sistemas de recomendação e de qualquer outro sistema algorítmico pertinente;
  • seus sistemas de moderação de conteúdos;
  • os termos e políticas de uso aplicáveis e a sua aplicação consistente; e
  • a influência da manipulação maliciosa e intencional no serviço, incluindo a utilização inautêntica ou da exploração automatizada do serviço, bem como a amplificação e difusão potencialmente rápida e alargada de conteúdos ilegais e de informações incompatíveis com os seus termos e políticas de uso.

Dados

A portaria editada pelo MJSP atribui à  Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) a coordenação do “compartilhamento, entre as plataformas de redes sociais e as autoridades competentes, dos dados que permitam a identificação do usuário ou do terminal da conexão com a Internet daquele que disponibilizou o conteúdo”.

Com isso, cabe à SENASP “requerer a adoção de medidas que uniformizem o atendimento das autoridades competentes, nos termos da legislação, nos diversos âmbitos federativos e o atendimento das respectivas requisições”, além de “orientar as plataformas a impedir a criação de novos perfis a partir dos endereços de protocolo de Internet (endereço IP) em que já foram detectadas atividades ilegais, danosas e perigosas referentes a conteúdos de extremismo violento que incentivem ataques ao ambiente escolar ou façam apologia e incitação a esses crimes ou a seus perpetradores”.

Os conteúdos ilícitos moderados devem instituir um banco de dados “para fins de compartilhamento entre as plataformas de redes sociais, com o objetivo de facilitar a identificação pelos sistemas automatizados”.

‘Circunstâncias extraordinárias’

Um dos dispositivos da portaria se refere a “circunstâncias extraordinárias que conduzam a uma grave ameaça à segurança pública” como possível atuação do MJSP contra as plataformas. 

 “Na ocorrência de circunstâncias extraordinárias que conduzam a uma grave ameaça à segurança pública objetivamente demonstrada, o Ministério da Justiça e Segurança Pública poderá determinar a adoção de protocolos de crise, a serem observados pelas plataformas de redes sociais com medidas proporcionais e razoáveis”, prevê a portaria. 

Prazo

A portaria não descreve prazo nem valor de multa. No entanto, ao anunciar a medida, o ministro afirmou que a Senacon poderia adotar o pedido de remoção de conteúdos em até duas horas, tendo como referência decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no ano passado. Quanto à multa, Dino afirmou que poderia chegar a R$ 12 milhões. 

Secretário Nacional do Consumidor, Wadih Damous, assina notificação às plataformas digitais | Foto: Tom Costa/MJSP

Já com base na portaria, uma notificação despachada na noite desta quinta-feira, 13, pelo secretário Nacional do Consumidor, Wadih Damous, dá prazo de 72 horas para que as redes sociais informem quais medidas estão tomando para evitar conteúdos que fomentam a violência nas escolas.

Posições favoráveis

O deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), que é o relator do projeto de lei (PL) 2630/2020, conhecido como PL das Fake News, que impõe diretrizes para moderação de conteúdo, apoiou a portaria do MJSP.

Em suas redes sociais, ele afirmou apenas que a iniciativa do órgão “é mais uma demonstração da urgência que tem a aprovação desse projeto”.

A especialista Yuri Nabeshima, head das áreas de inovação e trabalhista do VBD Advogados acredita que a portaria “vem em boa hora”.

“Ao estabelecer diretrizes razoáveis e factíveis, como adoção de medidas proativas para limitar propagação de conteúdo dessa natureza e como o desenvolvimento de protocolos de crise, o Ministério da Justiça conclama as plataformas de redes sociais – com a urgência que exige o caso – a cooperar com o Estado na defesa da proteção do direito à saúde e à vida, sobretudo no caso das crianças e adolescentes”, explica Yuri. 

Ainda de acordo com a especialista, o respaldo dado às secretarias do MJSP, “garante a necessária agilidade e transparência que a situação demanda, muito embora as sanções aplicáveis na hipótese de descumprimento se deem na esfera do processo administrativo ou judicial, conforme o caso”.

Posições contrárias

Deputados do partido Novo ingressaram um Projeto de Decreto Legislativo – PDL 122/2023 – para anular os efeitos da portaria que impôs regras às plataformas digitais. A proposta, assinada por Adriana Ventura (SP), Gilson Marques (SC), e Marcel van Hattem (RS), diz que a portaria tem um “argumento aparentemente bem-intencionado”, mas que cria um “tribunal da verdade dentro do ministério”.

Em um primeiro ponto contra a norma, os deputados dizem que há uma “usurpação de competência dos demais Poderes: do Poder Legislativo, ao definir no caso concreto o que são conceitos extremamente abertos, a exemplo do que seja ‘danosos e nocivos’; e do Poder Judiciário, ao definir no caso concreto (sem análise do Judiciário) o que são conteúdos ‘flagrantemente ilícitos'”.

Outro argumento dos parlamentares para derrubar a portaria é que o texto estaria utilizando “conceitos extremamente abertos” e que “tal subjetividade no controle da ‘verdade’ por um órgão de governo, e não de Estado, é um elemento perigoso à manutenção do ambiente democrático”. 

Os deputados também ressaltam que a norma autoriza a quebra de sigilo de dados de forma inadequada pelo órgão e que a Senacon não teria competência legal para realizar procedimentos administrativos do tipo. A aplicação do CDC para conteúdo digital também é pendente de legislação própria.

“No mínimo, carece de debate sério e com especialistas, para se evitar a banalização do CDC [Código de Defesa do Consumidor], sob pena se tornar uma relação de consumo uma entrevista veiculada em qualquer meio de comunicação, por exemplo”, afirmaram na justificativa.

A especialista Mirella da Costa Andreola, sócia da área de societário, contratos e M&A do Machado Associados, também faz ressalvas. Para ela, o Ministério da Justiça está ignorando dispositivos do Marco Civil da Internet.

“O Marco Civil da Internet prevê que o uso da internet no Brasil tem por fundamento o respeito à liberdade de expressão e, por princípio, a preservação da natureza participativa da rede. Especialmente é ignorado o art. 19 do Marco Civil, que determina que ‘com intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial, não tomar as providências para (…) tornar indisponível o conteúdo'”, ressalta Andreola.

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Carolina Cruz

Repórter com trajetória em redações da Rede Globo e Grupo Cofina. Atualmente na cobertura de telecom nos Três Poderes, em Brasília, e da inovação, onde ela estiver.

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