Os riscos empresariais da inadimplência em serviços essenciais
*Por Maria Luciana Pereira de Souza e Rafael Pistono
A explosão mundial do uso da internet e a democratização das telecomunicações alteraram consideravelmente as relações entre pessoas, sejam elas, naturais ou jurídicas, tornando a sociedade terreno de questões jurídicas jamais imaginadas até o advento das TICs. O direito, menos dinâmico que a tecnologia, precisa evoluir e oferecer meios de mitigação dos riscos, preservando a dignidade humana (conceito fluido, multifacetário e multidisciplinar, especialmente quando no enfrentamento de uma pandemia).
Nesse contexto, recentemente, o Decreto 10282/20, que regulamenta a Lei 13979/20, estabeleceu, dentre outros, que telecomunicações e internet são serviços de natureza essencial. Não há dúvidas de que a medida se mostra acertada, não apenas no recorte temporal da pandemia, mas de forma definitiva, uma vez que tais serviços são pilares da Sociedade da Informação. Porém, cautela é fundamental para que a interpretação equivocada ou alargada da norma não cause a inviabilidade econômica de manutenção das operações de telecom e internet. Se o reconhecimento da essencialidade significa um importante avanço, também, acarreta o agravamento do risco da atividade empresária, isto porque, na sequência do decreto e distanciadas da análise sistêmica que a questão impõe, multiplicam-se, por todo o país, demandas argumentando o impedimento da suspensão dos serviços em caso de inadimplemento. De pronto, conforme esclarecido pelo MCTIC, as regras sobre suspensão e cancelamento de serviços em razão do inadimplemento permanecem sujeitas às regras estabelecidas pela Anatel (RGC, aprovado pela Resolução 632/14).
Ocorre que em sede de cognição sumária, decisões judiciais estão sendo proferidas, no sentido de determinar a abstenção de suspensão dos serviços, mesmo diante do inadimplemento. Se mantidas, tais decisões, serão também responsáveis por milhares de termos de rescisão de contratos de trabalho e pela inviabilidade da atividade econômica de empresas, que, apesar de prestadoras de serviço essenciais, estabelecem com os contratantes relações jurídicas de natureza privada. Cumpre observar ainda que, com o objetivo de assegurar a todos existência digna, a Constituição Federal dispõe, em seu Art. 170, que a Ordem Econômica terá como fundamentos a valorização do trabalho e a livre iniciativa. Assim, não se pode ignorar que a preservação da empresa, também constitui um dos pilares de sustentação do Estado Democrático de Direito.
As empresas – que prestam serviços essenciais – são também empregadoras, contribuintes, consumidoras, e é por isso que a atuação prematura do Judiciário, sem adstrição ao caso concreto, é cristalinamente perigosa e lesiva para toda a sociedade! De carona, com interpretação consumerista, players em operações B2B estão remetendo notificações de suspensão de pagamento e alertam que, mesmo diante do inadimplemento, a natureza essencial dos serviços justificaria a manutenção. Outros, tentam a rescisão unilateral, sem observância ao estabelecido em contrato. Não se pretende defender que a suspensão dos serviços seja utilizada – em plena pandemia global – como medida coercitiva ao pagamento. Entretanto, não considerar a importância da manutenção do fluxo financeiro necessário ao equilíbrio da relação contratual e à própria viabilidade operacional, é um erro que pode ter como consequência a efetiva indisponibilidade do serviço.
Sem a pretensão de esgotar os argumentos relevantes ao tema, não se pode ignorar, três cenários: o 1º, o do Consumidor afetado em sua capacidade de pagamento por força da pandemia, tornando-se, a partir de então, inadimplente e, portanto, amparado pela continuidade impositiva da prestação do serviço. O 2º, aquele cujo inadimplemento é anterior à pandemia e, portanto, não induz à continuidade impositiva da prestação dos serviços. Apesar de a análise consumerista proposta demandar a fixação do nexo causal entre “Covid-19 e inadimplemento”, por analogia, pode-se, ainda, analisar a perspectiva da responsabilidade da fornecedora de serviço essencial pelo superendividamento da Parte, pois a continuidade da prestação do serviço, diante da perda da capacidade de pagamento e, portanto, o aumento continuado e sucessivo da dívida, pode conduzir o consumidor à insolvência financeira, afetando o seu patrimônio e a sua dignidade
Assim, considerado o manifesto momento de incerteza econômica global, impor a continuidade do serviço sem a avaliação da manutenção da capacidade de pagamento, configura contingência de encargo social, fato que encontra causa e efeitos em todo o mercado – e, exatamente por isso, não pode ser ignorado. O 3º é o que envolve as relações B2B. Nestas, considerando que não há assimetria técnica e o contrato decorre das necessidades, interesses, avaliação e assunção dos riscos e custos por cada parte, não se revela razoável que a contratante simplesmente invoque “força maior”, abstenha-se do pagamento e, ainda tenha a legítima expectativa da continuidade da prestação dos serviços sob o singelo argumento de que eles são de natureza essencial. Não há dúvidas de que numa relação jurídica empresarial amparada pelo Código Civil, as responsabilidades e obrigações de manutenção da viabilidade de execução do contrato são recíprocas. A paridade de armas e a boa-fé objetiva, elementos que impõem tratativa colaborativa e proba, permitem a revisão do contrato diante de acontecimento imprevisível e excepcional a autorizar a mitigação do pacta sunt servanda. Nesse sentido, instituto que pode embasar a revisão contratual, o rebus sic stantibus, preconiza, em essência, que o contrato e as obrigações dele decorrente são válidos enquanto as circunstâncias permanecerem inalteradas.
Medida de manutenção do equilíbrio contratual prevista nos Arts 478/480 CC, a Teoria da Imprevisão permite a revisão contratual quando fato extraordinário e imprevisível for causador de onerosidade excessiva e desde que não coberto objetivamente pelos riscos próprios do negócio. Embora ambos permitam a revisão superveniente dos contratos (e até mesmo a resolução), não se confundem, eis que para o 1º basta que algo se modifique em relação ao momento da contratação, e para o 2ª é necessária a conjugação da superveniência, imprevisibilidade e onerosidade excessiva. Há, ainda, outra medida de manutenção do equilíbrio das relações de trato continuado, pouco explorada no Brasil, mas comum nos contratos intl´s mais complexos e com mais inseguranças para as partes, é a hardship clause que, consectária autonomia da vontade, pode ser definida como cláusula de renegociação e revisão que proporciona a manutenção do equilíbrio e da relação contratual durante toda a execução. De forma resumida, esses são os três mecanismos de revisão que viabilizam o reequilíbrio das relações obrigacionais de trato continuado, aplicáveis inclusive aos contratos que abarcam serviços essenciais.
Em um momento de absoluta incerteza econômica como o presente, decorrente da pandemia exponencial da Covid-19, esses mecanismos podem servir de farol para que as empresas, em plena tempestade, distantes de um porto seguro e sob risco de iminente naufrágio, adotem uma postura colaborativa e assim, juntas, reequilibrem as obrigações recíprocas e atraquem em terra firme. Afinal, enquanto durar a situação de calamidade pandêmica, a concessão de descontos, nova precificação dos serviços, flexibilização das condições de pagamento, dentre outros atos livremente ajustados entre as partes, tornam-se ações legitimas e necessárias. Todavia, como já exposto, não se pode admitir como legítima, sem a análise de todos os comandos jurídicos aplicáveis e das minúcias do caso concreto, a imposição da manutenção dos serviços – ainda que essenciais – sem a devida contraprestação pecuniária.
Também não se pode negar, quer seja sob o recorte da relação consumerista ou empresarial, a essencialidade dos serviços de telecom e internet, bem como a suposta legitimidade da ampla limitação de suspensão dos serviços ante o inadimplemento, ostentam flagrante colisão entre direitos. Com efeito, nenhum direito é absoluto, pois mesmo os direitos fundamentais podem ser relativizados ante o caso concreto – hipótese em que a limitação/relativização deve obediência aos demais princípios constitucionais e atendimento às regras da mínima restrição e da máxima observância, fixando-se a adequada prevalência, pois é consectário de um Estado Democrático de Direito que a Constituição privilegie ideologias diversas.
*Maria Luciana Pereira de Souza e Rafael Pistono integram o escritório CTA Advogados