Novas premissas para o compartilhamento de postes
Por:* Agostinho Linhares, Alexandre Rosa Lopes, Leonardo Euler de Morais
Em reunião realizada em 23/07/2024, a Diretoria da Aneel extinguiu o processo administrativo nº 48500.003090/2018-13, que visava a edição do Novo Regulamento de Compartilhamento de Infraestrutura entre os setores de energia elétrica e telecomunicações.
Nos termos da fundamentação do Voto-Vista, acompanhado de forma unânime pela Diretoria da Aneel, a extinção do processo ocorreu em razão da superveniente publicação do Decreto nº 12.068, de 20 de junho de 2024, que impunha o dever da “cessão da exploração dos postes” às distribuidoras de energia elétrica, o que, na percepção da Aneel, caracterizou fato novo relevante capaz de, por si só, modificar significativamente o contexto decisório, exigindo a retomada do início do processo de regulamentação.
A revisão estava em pauta desde 2018 e, devido à sensibilidade do tema para as prestadoras de telecomunicações, especialmente as de pequeno e médio porte, o assunto sempre esteve em destaque no setor, gerando inúmeras manifestações das agências reguladoras e órgãos ministeriais. Havia expectativa de que uma nova proposta de regulamentação fosse publicada em breve.
A presente reflexão não se propõe a abordar a exigência de cessão ou a adequação do reinício do processo de regulamentação, ou até mesmo a necessidade de uma entidade de terceira parte para a regularização e manutenção do ordenamento da ocupação dos postes. Noutra vertente, traz à luz ponderações sobre as premissas da regulação do compartilhamento.
Pois bem, a atual regulação do compartilhamento é pautada em determinados fundamentos que, na nossa concepção, merecem uma análise mais detida. São elas: 1) a consideração da liberdade negocial para fixação do preço do compartilhamento (art. 3º, §4º, Resolução Aneel 1044/2022);[1] 2) a consideração de que o preço do compartilhamento é uma receita acessória da concessão (art. 629, §1º, V, Resolução Aneel 1000/2021);[2] 3) a consideração de que o poste é um bem (em posse) da distribuidora e, como tal, enseja a sua exploração econômica; e 4) a previsão da responsabilidade civil pela regularização e pelos danos da ocupação imputadas objetivamente ao setor de telecomunicações (art. 18, Resolução Aneel 1044/2022).[3]
Considerando a regulação vigente, a proposta do Novo Regulamento de Compartilhamento apresentou duas importantes correções: 1) o reconhecimento do poder de mercado das distribuidoras para fixar o preço unilateralmente, o que justifica a regulação dos preços. Assim, segundo a proposta apresentada, a Aneel poderia fixar os preços do compartilhamento por ato normativo; e 2) a possibilidade de extinção do desconto do preço do compartilhamento para a modicidade das tarifas de energia.
Conquanto sejam avanços notáveis, o Regulamento proposto ainda considera o preço do compartilhamento como receita acessória. Como tal, o Poder Concedente deve promover descontos para favorecer a modicidade tarifária, nos termos do art. 11 da Lei 8.987/1995.
Ora, não obstante os avanços consignados na proposta do novo regulamento, a regulação do compartilhamento deve ser pautada por alguns vetores diretivos. Entre os quais, destacamos considerar:
- Que o contrato de compartilhamento tem características de direito real, se aproximando de uma servidão. Assim, o preço do compartilhamento tem natureza de indenização pelas despesas incorridas e não deve ser considerado como receita acessória da concessão. Essa premissa é fundamental para a legítima justificação da não reversão de receita à modicidade tarifária.[4]
- Que um único poste, em razão de suas funções, pode ser fracionado em poste de energia, poste de telecomunicações e poste de iluminação pública. Assim, o que foi concedido às distribuidoras foi a execução dos serviços de distribuição de energia, sendo o poste, um bem público reversível, utilizado pela distribuidora nos limites e na medida da execução dos serviços de distribuição de energia. Ao mesmo tempo, cuida-se de um bem público autônomo. A partir de um novo paradigma de compreensão dessa infraestrutura, considerando suas diversas funções utilidades, uma nova perspectiva se apresenta para adequada gestão, governança e precificação das finalidades a que serve. Portanto, a regulação do poste de telecomunicações deve ser desenvolvida pelo setor de telecomunicações. Essa é a aplicação da teoria funcional dos bens públicos, adotada literalmente, pelo parágrafo único do art. 73 da Lei nº 9.472/1997, a Lei Geral de Telecomunicações (LGT).[5]
- O real poder de mercado das distribuidoras, o que justifica a regulação mais assertiva das condições de acesso, em especial no que concerne ao preço do ponto de fixação. Embora tal diretiva tenha sido contemplada na proposta normativa arquivada, o regulamento direcionou a regulação do preço para um futuro ato da Aneel. Ocorre que a postergação de tais condições colabora para elevação de conflitos e a judicialidade entre os setores.
- Adequadamente os contornos da responsabilidade civil, partindo do pressuposto de que ato normativo infralegal da Aneel não pode disciplinar a matéria, e que a Aneel não pode imputar responsabilidade objetiva ao setor de telecomunicações, que não regula.
As premissas do compartilhamento
Ao nosso ver, a adoção das premissas corretas é fundamental para assegurar efeitos práticos, entre os quais:
- A revisão da forma de remuneração pela ocupação do segmento do bem destinado à função de suporte à prestação de serviços de telecomunicações, considerando os preços do compartilhamento referenciados aos custos. A adoção das premissas corretas é decisiva para o cálculo da metodologia dos preços.
- O fim da reversão do preço do compartilhamento para a modicidade tarifária de energia, considerando, inclusive, que o consumidor de energia é o mesmo consumidor de telecomunicações.
- A necessidade de maior participação do setor de telecomunicações na formulação das normas de acesso e ocupação, no acompanhamento das metas de regularização, na governança, na fiscalização e no monitoramento da ocupação.
- O resguardo das atribuições regulatórias da Anatel, consignadas textualmente no parágrafo único do art. 73 da LGT.
- A adequação das normas da responsabilidade pela regularização vinculada à participação do agente infrator para a irregularidade.
Conclusão
A efetividade dos avanços pretendidos na regulação do compartilhamento de postes deve preconizar as premissas corretas. Afinal, tais premissas perpassam todo o aparato regulatório e ultrapassam os limites e o escopo de um ato normativo.
Por isso, nos ocupamos de discutir, em breve síntese, as premissas que devem nortear a formulação e aplicação da regulação atinentes ao compartilhamento dos postes. Nesse escopo, não é o propósito da presente reflexão esgotar o desenvolvimento das premissas elencadas ou de suas repercussões diretas.
De fato, estamos diante de uma situação complexa, o que motiva a utilização de recursos que considerem a matriz de interesses dos agentes, o desenho institucional, a autorregulação e os mais modernos vetores de governança dos recursos.
É certo que o desenvolvimento das premissas pelas quais esse debate se fundamenta está diretamente correlacionado com a superação do ceticismo estabelecido. Fundamental, pois, para que sobrevenham melhores perspectivas de endereçamento da problemática.
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[1] “Art. 3º As infraestruturas compartilhadas devem ser utilizadas, prioritariamente, para prestação dos serviços outorgados ao detentor. (…) § 4º A destinação do uso das instalações do detentor para o desenvolvimento das atividades de que trata esta resolução deve ser tratada de forma não discriminatória e a preços livremente negociados entre as partes”. (Resolução Aneel 1044/2022)
[2] Segundo o Proret (Procedimentos de Regulação Tarifária) da Aneel conta com o Módulo 2.7 — Outras Receitas (Anexo XX), o compartilhamento das receitas será de 60% da receita bruta, sendo que “um percentual de 40% será atribuído à concessionária, com fins de estimular a eficiência na prestação do serviço, enquanto a outra parcela será destinada aos consumidores do serviço de distribuição de energia elétrica”.
[3] “Art. 18 O detentor deve estabelecer em seus contratos de compartilhamento cláusulas que definam os requisitos estabelecidos no art. 20 do Regulamento Conjunto anexo à Resolução Conjunta nº 001, de 1999, inclusive: I – a responsabilidade objetiva do ocupante sobre eventuais danos causados a infraestrutura do detentor, aos demais ocupantes ou a terceiros;” (Resolução Aneel 1044/2022)
[4] Essa discussão foi exaustivamente tratada no livro Compartilhamento dos Postes: Fundamentos Teóricos e Soluções Práticas de autoria de Alexandre Rosa Lopes e editado pela Juruá.
[5] “Art. 73. As prestadoras de serviços de telecomunicações de interesse coletivo terão direito à utilização de postes, dutos, condutos e servidões pertencentes ou controlados por prestadora de serviços de telecomunicações ou de outros serviços de interesse público, de forma não discriminatória e a preços e condições justos e razoáveis. Parágrafo único. Caberá ao órgão regulador do cessionário dos meios a serem utilizados definir as condições para adequado atendimento do disposto no caput.” No caso do compartilhamento de postes o cessionário dos meios são as prestadoras de telecomunicações, assim, por uma interpretação literal, a Anatel, como órgão regulador do cessionário, é responsável por definir as condições ou premissas do compartilhamento.
* Agostinho Linhares é Diretor Executivo do Instituto de Pesquisa para Economia Digital (IPE Digital) e Doutor em Telecomunicações.
Alexandre Rosa Lopes é advogado, sócio do escritório ARL Advogados e consultor legislativo da CLDF.
Leonardo Euler de Morais é ex-presidente da ANATEL.