Luciano Leonel: “6G não será uma rede para as operadoras, mas uma rede para a sociedade”
O professor Luciano Leonel não é vidente, mas já sabe como será o futuro. Pesquisador no Inatel, em Minas Gerais, ele foi responsável por estudos sobre o 5G iniciados ainda em 2014 no Brasil. Agora, com as novas redes ativadas, ele já trabalha com o que será da tecnologia de comunicação depois de 2030, no 6G.
E avisa, tudo vai mudar. O 6G será a rede das redes, feita para atender necessidades das pessoas, sem amarras de padronização determinada por 3GPP. Terá um núcleo universal de aplicações ao qual toda e qualquer rede – seja móvel, seja fixa, seja em espectro não licenciado, seja em espectro licenciado – vai se conectar, levando a uma onda de inovação sem precedentes.
O papel das operadoras será outro, focado na oferta de serviços mais bem especificados do que os baseados em comunicação e volume de dados trafegados. Ao mesmo tempo, as pessoas terão liberdade para integrar redes próprias à das operadoras.
Aliás, o conceito de rede deixará de ser baseado na comunicação ponto a ponto. Haverá troca de dados e interação entre o universo físico, digital e biológico, de forma instantânea. A partir de quando? 2035, no mínimo. Confira na entrevista abaixo a expectativa de Leonel sobre o tudo isso, e cujas tecnologias os acadêmicos do Inatel já desenvolvem em Santa Rita do Sapucaí (MG).
Leonel coordena as atividades de pesquisa do Centro de Referência em Radiocomunicações (CRR), sendo o responsável pelas pesquisas em 5G e 6G. Além disso, ele coordena a Comissão de Pesquisa e Casos de Uso do Projeto 5G Brasil, hospedado pela Telebrasil. Confira, abaixo, a entrevista completa.
O que vai ser o 6G?
Prof. Luciano Leonel – A rede 6G vai ser mais do que comunicação, terá outros serviços e funcionalidades que vão se complementar. A parte de posicionamento, imagem, sensoriamento do ambiente, identificando onde estão as coisas e do que são feitas. Tudo isso vai ser integrado para prover melhor qualidade de serviço e funcionalidades que hoje não existem numa rede móvel.
Então, por exemplo, nós temos gêmeos digitais. O que seria isso? Um mapa digital seria fazer o mapa 3D de uma cidade no computador. Este mapa está isolado da cidade em si. Se alguém for na cidade desabar um prédio, no mapa terá o prédio como se nada tivesse acontecido. Então não existe comunicação entre os dois modelos, o real e o virtual. Numa sombra digital, você tem a cidade sempre realimentando o mapa. Então se alguém derrubar um prédio, você tem sensores que percebem essa mudança no ambiente e atualizam o mapa automaticamente. Isso é uma sombra.
E temos finalmente os gêmeos digitais, que funciona nos dois sentidos. Então você pode fazer alguma coisa no mapa que vai atuar no mundo real. E se alguém fizer alguma coisa no mundo real, isso atualiza o mapa. Então a comunicação é bi-direcional. Com isso você poderia fazer numa cidade a análise de uma política, e antes de aplicá-la, consegue fazer avaliação se aquela política vai surtir o efeito que você quer.
Imagina que você está em São Paulo e quer melhorar o trânsito. Aí você bola um novo esquema de rodízio. Então você vai naquele gêmeo digital e aplica a nova política. E vê as consequências em trânsito, poluição, novos serviços – qual o impacto sobre Uber. Os dados em uso são medidas reais, em tempo real. Não tem um modelo estatístico por trás simulando o comportamento das pessoas. Você estaria medindo isso de fato. E isso para a indústria tem uma série de aplicações. O gêmeo digital permite fazer análise avançada de diagnóstico. Você pega o telefone, aponta para uma máquina e já vê vazão, pressão etc. O 6G permitirá isso ser de grande escala, vai funcionar com cidades inteiras.
A rede tem que ser capaz de sensoriar. Como avaliar o impacto do trânsito sobre a propagação de ondas eletromagnéticas? Vai ter que saber de que materiais os carros são feitos e como estão se deslocando. Então a rede vai ter não só comunicação, mas também sensoriamento. A parte de medida e análises de situações reais vai ser tão importante quanto a comunicação.
Vai ter a ação do ponto de vista biológico, sensores biológicos para mapear como o seu organismo está funcionando, como está sua saúde, seu nível de atividade física. A gente vai ter uma rede capaz de perceber elementos físicos e biológicos e virtuais. Vai ser uma integração dos mundos físico, virtual e biológico de maneiras transparente de fluxo de informação.
Em que ano isso?
Leonel – A ideia é que seja em 2035.
No Brasil?
Leonel – A gente não trabalha com a ideia do Brasil especificamente em si. Trabalhamos com a rede no mundo. Entendemos que em 2030 a 2033 terá a padronização em andamento. E a implantação em torno de 2033 a 2035. Essas são as expectativas.
No passado o Brasil tinha uma defasagem muito grande com relação ao que acontecia no resto do mundo. Hoje em dia, já não está tanto assim. O atraso no 5G houve mais em função de problemas internos nossos de regulamentação, o cuidado que a Anatel teve para fazer a coexistência do 5G com a banda de satélite, a gente fez isso com muito cuidado para ter os problemas que por exemplo estão acontecendo nos Estados Unidos, com a integração do 5G com os altímetros de aviões. Esse problema não está acontecendo aqui porque a Anatel fez o dever de casa muito bem feito. Atrasou um pouquinho, mas a gente conseguiu no final fazer uma transição mais bem resolvida.
Por que aqui não tem interferência? Não é a mesma banda?
Leonel – A gente liberou a mesma banda de 3,5 GHz. Só que nos EUA essa banda está mais próximo dos 4 GHz, a nossa está mais no 3,5 GHz. O altímetro opera em 4,2 GHz e 4,4 GHz. No Brasil ainda não fizemos estudos para avaliar o impacto, mas o fato estarmos mais longe, dá a entender que não teremos tantos problemas.
Se a gente não tivesse tomado esse cuidado, a gente provavelmente colocaria 5G no Brasil e teríamos a ingrata surpresa de que a rede não poderia funcionar em banda C. Então o processo foi muito bem feito.
Tivemos um atraso, mas esperamos que no futuro esse atraso seja cada vez menor.
Está havendo também harmonização das redes. Na primeira geração e na segunda, cada país tinha um padrão. No Brasil, onde tínhamos as teles estaduais, cada uma tomou uma decisão sozinha, e tinha incompatibilização entre os estados. Quem morava em Minas Gerais falava em telefone TDMA. Em São Paulo era CDMA. Então eles não se falavam. Se viesse de Minas para SP, não se falavam. Na terceira começou um processo de harmonização, que não foi 100% bem sucedido. Mas isso aconteceu no 4G, que se tornou um padrão global.
Mas ainda existem os problemas de bandas, com cada país usando uma banda diferente. No 5G isso está mais próximo, mas ainda não está tudo harmonizado. No 6G espera-se uma rede operando de forma única no mundo todo.
Hoje o problema é mais comercial, de roaming, do que de compatibilidade…
Leonel – Exatamente. As parcerias comerciais são mais difíceis do que a integração tecnológica.
A rede 6G parece muito cara para nossa realidade.
Leonel – Sim, esses são os desafios. Temos uma série de desafios que se apresentam já no 5G, como a pulverização das estações radiobase. No 6G teremos os sensores e atuadores. Vai ter atuação sobre semáforo, sobre lixo.
A escassez de chips pode ser de longo prazo e afetar a chegada do 6G?
Leonel – Acredito que isso será resolvido em breve. Primeiro houve a conscientização das grandes potências de que a concentração da fabricação de chipsets em um único espaço do mundo não é uma boa ideia. Então ter diversidade espacial da produção é interessante. Vemos muitas fábricas fazendo novas plantas nos EUA, a TSMC, por exemplo, e na Europa. Além de melhorar a logística, vai melhorar a oferta. Então preço tende a cair. Além disso tem objetivos de uso de novos substratos, não apenas o silício, para ter redução de custo. Então vai ficar caro? A entrada em tecnologia é sempre onerosa, mas tende a cair com o tempo. Aconteceu com o 5G. Em 2019 o telefone custava 4 mil dólares, hoje já tem celulares de 2 mil reais.
Então essa é a tendência. Mas tem mais coisas. A gente passou pela pandemia com migração abrupta da realidade pessoal para a virtual, usando comunicação em dois sentidos: imagem, visual, e audição. Mas o ser humano evoluiu para utilizar cinco sentidos: aroma, paladar, toque. Isso tudo foi ceifado. Então o 6G visa também essa interação avançada, com uso de hologramas e com a transmissão de informações além do áudio e do vídeo. A principal é a comunicação táctil, do toque. A ideia é transmitir o contato através das redes. E isso tem que ser instantâneo. Estamos trabalhando para que a rede 6G tenha condições de criar isso.
O Inatel já tem o equipamento táctil para fazer testes?
Leonel – Ainda não. Isso já existe, tem algumas unidades para uso local. No Japão tem uma caneta em que você sente a superfície em que está escrevendo de forma virtual.
Isso vai exigir capacidade de transmissão de dados muito maior do que na transmissão de vídeos?
Leonel – Sim. E uma transmissão em tempos totalmente diferentes. Tem outro perfil de dados.
É também um tipo de dado diferente, por ser efêmero, né? Um toque, depois que acontece, se dissipa…
Leonel – Isso. Então se você tocar minha mão, isso tem que chegar até o outro lado, e tem um tempo de vida. Se o dado chegar muito tarde, melhor nem reproduzir. Então tem um tempo de vida do dado que teremos que respeitar e que será dado por nossa biologia.
Então mudaremos completamente a forma de usar a rede. Como faremos para reproduzir o toque? Como ter um tecido inteligente capaz de fazer isso? Tem uma proposta de fazer uma impressão por ultrassom ou de ar comprimido.
Tem que pensar isso pode ser feito por eletrôdos nas roupas. Tem uma série de estudos, mas entra o custo. Quanto custará fazer uma camisa que reproduz o toque? As pesquisas vão acontecendo.
O Brasil está bem posicionado na pesquisa do 6G?
Leonel – O Brasil está se colocando como sendo um ator importante no assunto nos casos de uso fundamentais para nossa sociedade. O mundo que estou falando aqui é muito futurista e distante. Mas temos aqui realidades muito próximas de nós que não tiveram solução nas gerações anteriores, e esperamos que a sexta geração responda. Então estamos atuando nisso. O exemplo mais notável é no agronegócio, onde temos grande defasagem em comunicação.
O que o 5G não resolve em comunicação no agro?
Leonel – A cobertura. O 5G não vai ter cobertura. A cobertura 5G é voltada cada vez mais para cidades. Você trabalha com frequências mais altas, células menores, adensando e aumentando a capacidade de bits por metro quadrado. Mas em uma fazendo você precisa de mais alcance.
Mas o 6G não vai usar ondas de alcance ainda mais curto, em terahertz?
Leonel – O 6G vai usar o terahertz em algumas aplicações. Mas o mais importante é que vai ser agnóstico em termos de rede de acesso. Ele não vai ser uma rede 3GPP com uma estação radiobase, uma torre. Ele vai ser capaz de integrar qualquer rede de acesso para que qualquer aplicação funcione.
Uma espécie de rede das redes?
Leonel – A rede das redes.
Isso já está combinado com o 3GPP, com a UIT?
Leonel – O 3GPP está ciente da demanda. A UIT está ciente. A One 6G Association é uma das mais fortes. Não dá mais para ficar vivendo sobre as restrições que o 3GPP impõe. Boa parte da motivação de começarmos a pesquisar o 6G vem disso. O IMT-2020 em 2013 e 2014, foi extremamente ambicioso nas definições para o 5G. Mas essa audácia toda na criação dos requisitos não se traduziu em audácia na padronização. O 3GPP se fechou em seu mundo, trouxe para a mesa os fabricantes de infraestrutura, de terminais móveis e as operadoras. E resolveram entre si como implantar no mundo. Saiu, então, uma padronização em linha com os interesses deles, vez de uma padronização pensada em resolver os problemas das verticais. O 6G estará alinhado às necessidades das verticais. Não é mais uma rede para as empresas de telecomunicações. É uma rede para a sociedade.
Isso significa que no futuro não teremos as operadoras como temos hoje?
Leonel – É que essas operadoras que vão colocar o sistema para funcionar não vão ser quem vai determinar os requisitos de sistema que vão atender. Vai ter operadora? Sem dúvida. Mas ela não vai determinar o requisito.
Mas não é a operadora que faz o investimento?
Leonel – Ela vai colher os lucros da prestação do serviço, mas quais serviços vai prestar, não será ela que vai definir. No agro hoje é assim. Você tem na ponta tratores modernos, com todos os sensores e equipamentos para funcionar e trocar dados. Mas isso não é usado porque não tem comunicação no campo, pois as operadoras estão interessadas na transmissão em quantidade de bits em áreas de alta densidade populacional.
No 6G o dono da fazenda tem autonomia para criar a própria rede?
Leonel – No 6G, como você terá a rede agnóstica, poderá usar via whitespace. Pode fazer integração com satélite. Pode usar a rede terrestre. Então consegue abrir um ponto de acesso a partir de uma fibra que você tenha custeado até sua sede. Pode usar uma rede de espectro não licenciado e prover rede local integrada com o núcleo de aplicação, que não esteja segmentada do núcleo da rede móvel. Mas que seja conectada à rede móvel.
É como se meu WiFi conversasse com a rede móvel?
Leonel – É como se seu WiFi fosse parte da rede móvel. Você vai ter todos os dispositivos conectados a um núcleo único responsável pelas aplicações. Tudo conecta e se comunica, com a finalidade de entregar as aplicações, não apenas comunicação em si, de forma transparente para o usuário que não vai se preocupar se está gastando dados. Tem um serviço de conectividade que provê acesso no celular, ou monitoramento de saúde, ou monitoramento do carro.
Como será a regulação disso?
Leonel – Como eu falei, tem muitos desafios por vir. É uma tecnologia que não existe, os custos vão ser muito grandes. Hoje estamos no estágio de vislumbrar cenários, tentar entender o que os cenários demandam da comunicação, alcance, vazão, espectro, latência. Estamos tentando achar esses números e definir quais tecnologias serão utilizadas para sustentar esses números. Depois, tem muita água para rolar.
O Inatel tinha dois projetos interessantes nas gerações anteriores. Uma era o 5G Range, um 5G para o campo de longuíssimo alcance. Outro era uma estação 4G portátil. Como estão estes projetos hoje em dia?
Leonel – O 5G Range continuamos a desenvolver. Estamos no processo de simplificar a tecnologia para reduzir o custo. Nossa ideia é diminuir o tamanho da estação radiobase dele, para ficar bem barato a ponto de qualquer pessoa comprar, instalar em casa e utilizar o whitspace, que é algo já permitido e regulamentado no Brasil. É um passo já no sentido de sair das amarras do 3GPP e ter uma rede de acesso para atender as demandas.
Já estamos conversando com parceiros comerciais para transformar em um produto, que possa ser comercializado. Trabalha de 400 MHz a 700 MHz, nos canais ociosos de UHF. Ele consegue localizar quais canais que não estão sendo utilizados e coloca sua rede ali. Se por acaso aparecer um canal de TV ali, ele muda automaticamente para a frequência ao lado.
Ele tem também longo alcance, mas não tem 50 Km de alcance como no projeto original por questões de regulamentação.
E a caixinha com LTE portátil?
Leonel – O 4G In a Box foi concluído e a tecnologia já foi transferida para a indústria, que é a Furukawa a fabricante. Lançaram ano passado, funcionando em 250 MHz para SLP [redes privadas]. No SLP independe de operadora. Forma uma rede privada na sua fazenda para cobrir a área. A gente produziu os devices também. São basicamente celulares com frontend [antenas] modificado para a banda de 250 MHz. Também tem um CPE modificado que pode ser colocado no trator. O CPE converte o sinal em WiFi e alimenta os telefones convencionais em volta do trator. Isso já está sendo vendido. Estamos agora criando o 5G In a Box, que terá mais capacidade, maior alcance, maior taxa de transmissão, operando na banda de 3,5 GHz.