Dantas: As ideias de Macron para regular a internet

Para o presidente francês, a não regulação da internet favorece os inimigos da razão, da democracia, do direito. Nomeou-os: o terrorismo, a pedofilia e outros cibercrimes, os estados autoritários ou vigilantes. E não esqueceu de chamar a atenção para os efeitos deletérios das fakes news nos processos políticos e eleitorais democráticos.
Marcos Dantas, UFRJ

Por Marcos Dantas*

Na abertura do Forum de Governança da Internet 2018 (IGF 2018), na sede da Unesco, Paris, no dia 12 de novembro último, o presidente da França, Emmanuel Macron, pronunciou um discurso que merece ser melhor divulgado, conhecido e debatido, pois pode ter demarcado o começo de uma nova fase na história, ainda jovem, da internet: Macron pode ter sinalizado a oficialização de um processo político que levará à regulação das atividades econômicas, políticas e culturais que são efetuadas sobre a internet, regulação esta que já vem sendo reclamada aqui e ali por um número crescente de atores mas não havia ainda recebido, até então, chancela de alguma liderança governamental reconhecida.

O IGF é um encontro anual, organizado e apoiado pela ONU, ao qual concorrem representantes de governos, porta-vozes de empresas, ativistas de movimentos sociais e pesquisadores universitários. Tem por objetivo debater e elaborar propostas sobre a gestão transnacional da internet.

A internet veio evoluindo ao longo de já quase meio século, desde as primeiras experimentações acadêmicas, num processo político-econômico pautado por arranjos que se pretendem meramente técnicos e, por isso, à margem de qualquer regulação estatal. Esses arranjos  funcionavam razoavelmente bem enquanto a comunidade da internet era principalmente técnica ou acadêmica, social e culturalmente um tanto homogênea, sobretudo concentrada numa pequena e elitista faixa da população global. Com o tempo, sobretudo de uns 15 anos para cá, a internet viu nascer e se desenvolver sobre ela, modelos de negócios impossíveis sem ela, a exemplo do Google e Facebook. Tornou-se essencial, vital mesmo, para as atividades comerciais de grandes, médias e pequenas empresas. Integrou-se à vida cotidiana, no trabalho ou no lazer, de uma imensa população que já soma cerca de 4 bilhões de pessoas espalhadas por todo o mundo. Resultado: hoje, pela internet, vive-se a vida real da sociedade realmente existente, com suas grandezas e misérias.

Foi sobre isso que nos falou Emmanuel Macron na abertura do IGF. Sublinhou que, desde o seu nascedouro, a comunidade que participou da evolução da internet formulou também um código de conduta, baseado na transparência, nas relações colaborativas, num mundo sem fronteiras, na liberdade de expressão. Os encontros do IGF ainda tentam manter vivo esse espírito pioneiro. Mas, goste-se ou não, a internet não é mais isso. E pensando justo numa internet que ainda possa servir sobretudo à democracia e ao estado democrático de direito, o presidente francês foi direto ao ponto: a internet precisa ser regulada. A rigor, falava dos negócios e práticas que se efetuam sobre a internet.

A internet, sustentou Macron, corre o risco de se tornar o exato oposto daquele espírito original. A sua não regulação favorece os inimigos da razão, da democracia, do direito. Nomeou-os: o terrorismo, a pedofilia e outros cibercrimes, os estados autoritários ou vigilantes. Bateu duro no discurso de ódio. E não esqueceu de chamar a atenção para os efeitos deletérios das fakes news nos processos políticos e eleitorais democráticos. A delegação brasileira presente no encontro sabia bem do que ele falava…

Sem citá-las nominalmente, Macron deu um recado claro para as plataformas que operam sobre a internet: Google/YouTube/Android ou Facebook/Instagram/WhatsApp, e ainda outras que tornaram-se, para bilhões de pessoas, a internet. Essas plataformas não são apenas provedoras de acesso. Para lucrar – e lucrar muito – com os dados pessoais de seus usuários, elas abrigam, organizam, editam, distribuem, favorecem a veiculação, ou não, de todo tipo de mensagem, todo tipo de conteúdo. Para o presidente francês, não há como não responsabilizá-las, também, pelo esmagador volume de mensagens odiosas ou criminosas hoje disseminadas na internet.

Ao longo da sua evolução, a comunidade da internet veio construindo um sistema multissetorial de gestão da rede, do qual o brasileiro Comitê Gestor da Internet (CGI.br) é um modelo mundialmente reconhecido. Macron lançou um desafio a esse modelo: a regulação deve ser construída com ampla participação de todos os setores mas também precisa reconhecer que o Estado democrático é o legítimo representante dos cidadãos e cidadãs numa democracia de direito. Protestou contra certa ideologia que rejeita o papel do Estado, juntando num mesmo balaio as democracias liberais, as “iliberais” (sic) e estados autoritários. Reconhecendo que, como chefe de Estado, podia estar sendo “politicamente incorreto”, afirmou que temos atualmente dois modelos de governança da internet: “californiano” e “chinês”. O primeiro, ultra liberal, autorregulado, ao fim e ao cabo é conduzido conforme os interesses das plataformas dominantes (e estadunidenses). O segundo define-se pelo firme e fechado controle estatal.

O presidente Macron convida à busca por um terceiro caminho que, em defesa da internet democrática, construa através de mecanismos participativos e colaborativos, um marco regulatório que, no plano econômico, iniba o controle oligopolista da rede por poucos e poderosos grupos e, no plano político-social, coíba a difusão dos discursos criminosos e terroristas, assim como os discriminatórios, odiosos, mentirosos. Se o conjunto dos países, sob coordenação direta da ONU, não lograr avançar esse pacto, o futuro parece ser cada país ou bloco de países, considerando suas realidades e interesses, formularem suas próprias leis regulatórias, fragmentando a internet. Aliás, é o que a Europa já vem fazendo, não deixou de lembrar Macron, a exemplo da sua recente lei de Proteção aos Dados Pessoais. Para não falar da China…

Na condição de presidente de um poderoso e influente Estado democrático, Emmanuel Macron trouxe para o proscênio o debate sobre a regulação da internet que, até então, avançava ainda um tanto só nos bastidores, reivindicada sobretudo por atores que estão chegando agora, percebendo seus impactos positivos e negativos, mas, em geral, desconhecendo sua história e mesmo seu próprio funcionamento gerencial e tecnológico. O processo está, sem dúvida, mais avançado na Europa. No Brasil, já temos um Marco Civil da Internet ainda a ser efetivamente testado e uma lei de Proteção de Dados que parece seguir o modelo europeu.

Para aquela comunidade que ouviu, entre murmúrios e muxoxos, a fala de Macron no IGF, estariam postos, a partir de agora, dois caminhos: aceitar o desafio que ele propôs e somar-se, com toda a sua expertise, ao processo regulatório en marche, ou se deixar atropelar por ele.

Marcos Dantas – Professor Titular da Escola de Comunicação da UFRJ, Diretor do Centro Internacional Celso Furtado, Conselheiro do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).

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