Bechara: O mito da isenção às plataformas de VOD

O Cogresso Nacional derrubou o veto presidencial ao art. 5º da Lei 14.173/202, pondo fim a dez anos de insegurança jurídica após criação da Instrução Normativa nº 95/2011 da Agência Nacional de Cinema

Bechara

Por Marcelo Bechara *

A “Cobrança de Condecine Título sobre as plataformas de VoD” tornou-se um fenômeno no Brasil através dos serviços de streaming e, nesta segunda, 27, o aguardadíssimo episódio final da última temporada enfim chegou ao catálogo. Muita gente correu para maratonar a temporada com direito a momentos de suspense e um final emocionante.

Aviso importante: A seguir você verá spoilers a respeito da última temporada dessa série.

A derrubada do veto presidencial ao art. 5º da Lei 14.173/2021 pelo Congresso Nacional finalmente colocou fim a uma insegurança jurídica de 10 anos criada a partir da Instrução Normativa nº 95/2011 da Agência Nacional de Cinema.

A primeira temporada tratou de mostrar o imbróglio regulatório causado pela norma da Ancine. Naquele mesmo ano, dois meses antes, a Lei do SeAC fora aprovada e, que por decisão negociada e consciente, não contemplou a disponibilidade de conteúdos por meio da internet através de Serviço de Valor Adicionado, como o VoD.

A segunda temporada deixou os maratonistas da série de cabelos em pé! A Ancine apresentou uma “solução” um tanto quanto engenhosa… Criou por norma infra legal o Segmento de Mercado Audiovisual de Vídeo por Demanda e, por meio da Instrução Normativa nº 105/2012, classificou o VoD na rubrica de Outros Mercados, tipicamente criado para enquadrar mercados de nicho, residuais, pequenos e pouco relevantes do ponto de vista econômico, a exemplo do Audiovisual em transportes coletivos e do Audiovisual em circuitos restritos.

A essa altura, não só você, mas todos que entendem a importância dos serviços de vídeo por demanda para o futuro do setor audiovisual sabiam que não tinha como dar certo! Afinal, era nítido em 2012 que o VoD era tudo, menos residual.

Para piorar ainda mais a situação, a incidência da Condecine sobre Outros Mercados é baseada por título. Isso significa que para cada obra audiovisual disponibilizada em uma plataforma de vídeo por demanda incidiria o tributo. No mundo real, não aconteceu. Praticamente nada foi recolhido e a Ancine ficou de mãos atadas.

A cobrança por título é feita para ambientes escassos e finitos como salas de cinema, locadoras de vídeos domésticos ou dentro das 24 horas de uma programação televisiva. E o sujeito passivo é o titular da obra. Ou seja, as plataformas nunca foram sequer previstas como contribuintes…. assim, não se pode falar em isenção das plataformas no pagamento da Condecine. Não se isenta quem jamais deveu.

A essa altura da série, todos nós já apreendemos que a beleza da disponibilidade de conteúdos em nuvem é justamente sua abundância. Com isso, ao se tributar cada título que integre uma biblioteca de plataforma de VoD, o que se faria na prática é matar a cauda longa.

Ora, é justamente nessas plataformas que conteúdos de nichos, muitas vezes de públicos restritos encontram espaço para fruição que grades de programação e salas de cinema não conseguem absorver. Ao penalizar a formação de grandes bibliotecas o efeito é o contrário do que se espera para o desenvolvimento da indústria. Além do mais, não sendo a plataforma o sujeito passivo da obrigação tributária essa conta recairia ao final sobre o produtor.

É sabido que as diversas isenções à Condecine estão previstas no art. 39 da MP 2228-1/2001. Se houvesse a tal isenção era ali que deveria estar inserido o novo dispositivo. Por óbvio!

A Ancine não acertou no figurino do VoD em 2012. O que o art. 5º da 14.173/2021 faz é criar uma interpretação de que a roupa que vestiram o VoD não lhe serve, jamais serviu. E isso se dá no art. 33-A, vejamos:

Art. 5º A Medida Provisória nº 2.228-1, de 6 de setembro de 2001, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 33-A:

‘Art. 33-A. Para efeito de interpretação da alínea e do inciso I do caput do art. 33 desta Medida Provisória, a oferta de vídeo por demanda, independentemente da tecnologia utilizada, a partir da vigência da contribuição de que trata o inciso I do caput do art. 32 desta Medida Provisória, não se inclui na definição de ‘outros mercados’.

Interpretar não é isentar. É preciso que se diga, contudo, e se distinga que a atual gestão da Ancine reconheceu que o modelo idealizado em 2011/2012 não poderia prosperar, gesto nobre e digno de valoração, pois não é comum no âmbito da administração pública. Ao estudar profundamente como o fez a agência reguladora cumpre seu papel de excelência e expõe uma maturidade que simboliza a essência de uma verdadeira Autoridade. O Órgão se mostrou como o protagonista mais equilibrado na trama.

Por fim, a penúltima temporada trouxe o que alguns chamaram de jabuti, mas é um uso equivocado da expressão típica para contrabando legislativo para nomear a emenda parlamentar na Medida Provisória 1018/2020. De cara ao ver sua ementa é identificável que ela alterava entre outras normas legais, a Medida Provisória nº 2.228-1 para dispor sobre o valor da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional.

Essa alteração tinha como objetivo, segundo a Exposição de Motivos 121/2020 MCOM/ME, o estímulo ao serviço de banda larga via satélite e o fornecimento de internet de qualidade em áreas rurais, isoladas e de difícil acesso. Ou seja, o objeto da MP 1018/20 é a atuação sobre os diversos mecanismos de contribuições para os serviços de telecomunicações, radiodifusão e audiovisual, todos debaixo de mesmo grande guarda-chuva da indústria de comunicação, inclusive “promover o acesso às telecomunicações em condições econômicas que viabilizem o uso e a fruição dos serviços, como revela a EM.

Não foi difícil logo perceber que o objetivo era a ampliação do acesso à internet banda larga e os serviços por ela disponibilizados, sendo que corrigir o erro regulatório, eivado de ilegalidade, através de interpretação adequada, direciona para a segurança jurídica e ampliação das ofertas de serviços de conteúdo, entretenimento e informação por meio da internet para os usuários.

Superado isso, devemos exorcizar outros mitos:

MITOS VERDADES
O mercado de vídeo por demanda (VoD) tem que pagar Condecine título porque está na lei; O segmento de mercado de VoD não está previsto em Lei;
O segmento “outros mercados” engloba vídeo por demanda; “Outros mercados” engloba mercados residuais (ex: mídia em ônibus, avião e metrô);
Quem paga condecine título são as empresas de streaming; Quem paga a condecine título é o produtor e o consumidor. A condecine incide sobre a cadeia de distribuição e não sobre o serviço que exibe;
Criou-se uma isenção fiscal para as empresas de streaming; A emenda não cria isenção, só há isenção para tributo previsto em lei. O texto traz apenas uma interpretação do conceito criado pelo legislador;
As plataformas de streaming não pagam imposto no Brasil; e As plataformas de streaming pagam: ISS, PIS/COFINS, CSLL, IRPJ, entre outros; e
O setor de streaming não investe no audiovisual nacional. Plataformas nacionais e internacionais investem e lançam com regularidade filmes, séries e documentários brasileiros com produção brasileira independente.

A última temporada foi muito esperada por todos e conseguiu atender a expectativa dos fãs da série ao apresentar um Parlamento altivo e com coragem de fazer o certo. O futuro e caminhos são tão abundantes quanto a bela nuvem que carrega não apenas obras audiovisuais, mas expressões, arte e sonhos. Essa serie terminou. Fechou no último capítulo a indesejável insegurança jurídica, mas abriu um spin-off com uma nova trama repleta de oportunidades e experiências para toda a indústria e sua maior estrela: o usuário.

*Marcelo Bechara é Diretor de Relações Institucionais do Grupo Globo*

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