Abrint: Assimetrias regulatórias não protegem empresas, corrigem falhas de mercado

A ausência de medidas regulatórias assimétricas poderia conduzir o mercado de acesso fixo em banda larga a um cenário de intensa concentração
*Cristiane Sanches, associada da ABRINT e diretora jurídica da associação entre 2017 e 2018

*Por Cristiane Sanches

Números sempre incomodam. Números desafiam políticas públicas, realidade econômica e escandalizam a divisão do bolo entre as empresas. Nosso mercado de telecomunicações não é diferente e, para entendê-lo, precisamos enaltecer o sucesso da estratégia regulatória brasileira na adoção de medidas assimétricas para prestadoras de pequeno porte.

Entende-se como regulação assimétrica a estratégia capaz de combinar instrumentos de regulação do monopólio natural e da regulação da concorrência.

Assimetria regulatória não significa favorecer uns em detrimento de outros. Muito menos reduzir direitos consagrados ou prejudicar consumidores. Também não se reveste de qualquer espécie de ilegalidade. Elas são frutos de uma construção sólida e permitem que as explorações dos serviços sejam pautadas por critérios complementares, como relevância social, interesse público, complexidade tecnológica e competição do mercado, sem prejuízo aos princípios constitucionais, às normas gerais de proteção à ordem econômica e aos direitos do consumidor.

A União Europeia se pautou em princípios da concorrência imperfeita quando, em 2002, introduziu o conceito de Poder de Mercado Significativo (PMS). No Brasil, as primeiras tentativas de regulação assimétrica fundada em PMS datam de 2005, mas só a partir de 2011, com as discussões do Regulamento da Exploração Industrial de Linha Dedicada (EILD) e com a publicação do Plano Geral de Metas de Competição (PGMC), a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) formalizou a lógica idealizada originalmente pelos europeus. Nessa ocasião, lá estavam as grandes operadoras, engajadas na disparidade. E por que haveria de ser diferente agora?

Não podemos esquecer, os números novamente! Agora, os provedores regionais representam a terceira força motora da inclusão digital no país. E não se trata (apenas) de liderar as adições líquidas da banda larga fixa, mas de capitanear as conexões em fibra óptica no cenário nacional e garantir o aumento das velocidades acima de 34 Mbps.

A regulação assimétrica continua sendo a intervenção pró-competição em mercados que apresentam falhas em seu funcionamento, de modo a atenuar efeitos do poder econômico de agentes dominantes. Diferentemente do contexto da regulação, em que pese o trocadilho, nosso mercado de telecomunicações é marcado por diferenças reais, melhor dizendo, é falho por assimetrias reais: as grandes operadoras têm fácil acesso a crédito, compartilham os mesmos postes pagando 1/5 do preço pago pelos provedores regionais e são beneficiadas por programas de incentivo fiscal que, por força das suas exigências e características, tal como o Regime Especial de Tributação do Programa Nacional de Banda Larga (REPNBL), se circunscrevem tão somente à realidade delas. Em face a isso, exige-se mais dessa intervenção pró-competição: o papel da assimetria regulatória vem ao encontro da convivência das empresas nessa realidade híbrida de competição. O mercado atual é ainda mais complexo que o contexto da discussão PMS. Estejam certos: nosso regulador está atento à essa evolução.

Sim, trata-se de uma evolução regulatória: desde a criação do SCM, em 2001, consolidando os serviços de transmissão de dados e simplificando a regulação setorial, em prol da convergência tecnológica, até a propositura de um tratamento diferenciado para prestadoras de pequeno porte ainda no âmbito do Plano Geral de Atualização das Regulamentação (PGR), de 2008. Posteriormente, o regulador cumpriu o propósito e positivou o conceito de prestadora de pequeno porte no RGQ-SCM. Adicionalmente, em 2013, atento aos números do mercado, formulou um segundo corte de desonerações para o “micro prestador”, aquele com até 5 mil acessos em serviço.

A partir do final de 2018, inova o Regulador brasileiro na clusterização – técnica de agrupamento de dados automaticamente – dos municípios, na regulação de novos mercados de atacado e na reformulação do conceito de prestador de pequeno porte. As iniciativas da Agência foram aplaudidas no âmbito internacional. Façamos o mesmo, nós, brasileiros. Acertou, definitivamente, a Anatel, ao inserir tais mudanças no novo PGMC, assegurando a transversalidade dos conceitos. Isso é estratégia regulatória.

A Anatel também galgou sucesso na governança institucional da pauta mínima de desonerações através da criação do Comitê das Prestadoras de Pequeno Porte. Essa iniciativa é uma aproximação, real, da premissa de tomar a responsabilidade para si, entendida como verdadeiro ideal democrático que alinha a concepção do direito como responsivo às demandas do seu ambiente, aproximando o regulador do regulado por meio de um diálogo institucionalizado.

A ausência de medidas regulatórias assimétricas claras e objetivas poderia, de forma inexorável, conduzir o mercado de acesso fixo em banda larga a um cenário marcado pela intensa concentração, com a presença de monopólio em diversas áreas, e caracterizado pela acentuada discrepância entre os preços praticados em áreas competitivas (como capitais e grandes centros) e aqueles verificados em localidades com menor disputa competitiva (interior), com efeitos ainda mais perversos sobre a qualidade do serviço ofertado.

Voltemos aos números e à dinâmica de crescimento dos provedores regionais: constrói-se rede, com recursos próprios, na sua cidade natal. Consolida o mercado, conhece os regionalismos, cumprimenta o cliente na rua, investe e garante qualidade de serviço e qualidade de atendimento. O tempo passa, sobra um pouco de dinheiro, e se constrói mais rede. E o ciclo se repete.

Conseguir competir nesse mercado e aumentar o market share é resultado desse foco na qualidade. Não há espaço para qualquer outra realidade. As desonerações regulatórias, tal como postas pela Anatel, não representam perda de direitos ou redução de qualidade. Vale lembrar que, mesmo em mercados de países desenvolvidos como EUA e Alemanha, em que outras estratégias assimétricas se fizeram presentes, na ausência de concorrentes de varejo sem redes, as empresas de telecomunicações precisaram atualizar a qualidade da rede para serem capazes de permanecer competitivas com as empresas de cabo entrantes. No Brasil, para se ganhar mercado, essa lógica se dá de maneira distinta: o acesso escasso e caro aos insumos essenciais para prover serviços, tais como transporte e link IP contratados das grandes operadoras e compartilhamento de uso de postes, exige um incremento na qualidade de serviço e de atendimento pelos provedores regionais. E quem ganha com tudo isso é sempre o consumidor.

A capilaridade das redes de acesso é, sim, fator absolutamente essencial para reduzir o gap digital que ainda existe em países em desenvolvimento com perfil continental como o Brasil: os provedores regionais, como regra, são por excelência desbravadores de novos municípios e novas áreas em municípios atendidos (perifericamente) pelas grandes operadoras.

O modelo descentralizado e híbrido da banda larga fixa no Brasil, caracterizado pela ascensão dos provedores regionais na interiorização e na capilarização de suas redes de acesso, com ênfase significativa em tecnologia óptica, é prova da adoção assertiva de medidas regulatórias assimétricas pelo órgão regulador. Respeitemos, todos, essa evolução.

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