Maria Luciana: o dilema da proteção de dados em época de coronavírus

Diferentes países estão usando a geolocalização do celular nas ações de combate à epidemia, o que remete à discussão sobre liberdades civis do usuário ou preferência para a saúde pública.

*Maria Luciana Pereira de Souza

Em diferentes países os dados de geolocalização dos usuários de telefones celulares integram alguma das ações de combate ao avanço da pandemia. No Brasil, a estratégia ganhou destaque desde o último dia 21, após a Prefeitura do Rio de Janeiro e a TIM Brasil anunciarem convênio que permitirá ao Centro de Operações Rio (COR) acessar dados que, devidamente tratados, serão capazes de gerar “mapas de calor” que orientarão parte das ações de contingenciamento da propagação da infecção capitaneadas pela Prefeitura.

Segundo informações prestadas por representantes das conveniadas quando do anúncio da iniciativa conjunta, não há risco para a privacidade dos titulares, pois os dados tratados no escopo do convênio não identificarão o usuário, são de livre acesso de todas as operadoras de telefonia móvel e se prestam exclusivamente a medir a concentração e/ou a mobilidade de usuários em um determinado espaço de tempo e local.

Coreia do Sul

A utilização de dados de geolocalização como tática de contenção ao avanço da COVID-19 ganhou repercussão mundial ao ser apontada como uma das ações responsáveis pelo sucesso da Coreia do Sul em sua cruzada contra o agente patogênico.

Ao contrário do formato operacionalizado no convênio carioca, a estratégia utilizada pela península asiática não apenas identifica, como acompanha em tempo real a geolocalização de milhares de pessoas por todo o país. Indivíduos com recomendação de afastamento social (por passagem ou estadia em locais classificados pelas autoridades sanitárias como de alto risco) são obrigados a se registrar em um aplicativo de gerenciamento de quarentena do governo sul coreano.

Ao se registrar, além de responder diariamente a uma série de perguntas sobre o estado de saúde, o usuário terá – literalmente – todos os seus passos monitorados, medida que tem o objetivo de assegurar que o indivíduo não abandone o local de isolamento e assim, se torne um vetor de disseminação viral sem controle.

Ainda que o acompanhamento se dê pelo recorte da “janela de risco” e não necessariamente de diagnóstico positivado, uma vez que o monitoramento repercute dados da saúde do titular, pode-se concluir sem dificuldade que estamos diante do tratamento de dados pessoais sensíveis, o que para as autoridades Sul Coreanas considerando a emergência de saúde, justifica o prestígio aos direitos coletivos em detrimento dos direitos individuais do titular.

Fato é, que o desconhecimento da comunidade cientifica quanto ao  novo Sars-CoV-2 está promovendo interações globais, que em essência, configuram verdadeiros benchmarkings entre países na busca das melhores práticas de forma a deter a escalada da infecção, por isso, a iniciativa do tigre asiático vem inspirando ações por todo o mundo.

Europa

Em território europeu, dentre outros países, já há registro de utilização na Espanha. E, França e República Tcheca anunciaram que também consideram utilizar a geolocalização como aliada no combate ao avanço da COVID-19.

Na Espanha, a Comunidade de Madrid (comunidade uniprovincial, que não se confunde com a Capital do país) em parceria com Telefónica, Ferrovial, Goggo network e Google, desenvolveu plataforma de auto avaliação diagnóstica, acompanhamento de quarentena e outras finalidades relacionadas ao interesse público (como por exemplo, o direcionamento de ações da administração).

A utilização é facultativa, assim como a autorização para rastreamento de geolocalização (a plataforma também permite a utilização sem a ativação da referida funcionalidade) e ao iniciar o cadastro via  https://coronavirus.comunidad.madrid/, o usuário é informado de que o uso da ferramenta tem finalidade sanitária, implica no tratamento de dados pessoais sensíveis relativos à saúde e recebe um código via SMS para validação de identidade cadastral.

Nem tão democráticas são as ações pretendidas por França e República Tcheca, apesar de a Comunidade Europeia ser a maestrina do moderno modelo de tutela da proteção de dados pessoais, cuja perspectiva jurídico normativa é consonante com a sistemática principiológica da proteção da dignidade humana, o formato de utilização dos dados de geolocalização pretendido pelos governantes dos dois países, não encontra larga ressonância e, ainda, desperta críticas e preocupação entre pares Comunitários e cidadãos europeus.

O governo da República Tcheca anunciou que utilizará os dados de geolocalização dos celulares de usuários que testarem positivo para o COVID-19 e daqueles usuários com os quais eles mantiverem aproximação social. O objetivo das autoridades é implementar ações de quarentena ou outras medidas de confinamento que se revelem necessárias à contenção da disseminação da doença.

Na França, a ação de geolocalização dos infectados foi divulgada pelo Comitê Científico nomeado pela presidência. O aplicativo será de utilização facultativa e ao utilizá-lo, o usuário poderá declarar livremente se está infectado ou se deseja apenas receber  instruções de proteção a fim de evitar a contaminação, no entanto, em caso de auto declaração de infecção, o aplicativo imediatamente calculará todos os locais de estada recente do doente e emitirá um alerta para todas as pessoas cujo contato social for identificado pela ferramenta.

Apesar do inegável benefício humanitário, os críticos temem que a utilização abusiva de ferramentas de monitoramento de pessoa individualmente identificada como portadora de infecção por tão temida doença, na ausência de uma supervisão comprometida com a proteção dos dados pessoais, apequenada pelo momento de caos humanitário, implique em lesão às liberdades civis do titular.

A despeito da preocupação e objeção dos críticos, importante observar que o Regulamento Geral de Proteção de Dados (assim como a LGPD, Art. 11, II) não veda o tratamento de dados pessoais sensíveis sem consentimento, notadamente, porque a proteção de dados não pode impedir que as autoridades atuem no combate à uma pandemia ou outras situações emergenciais de inequívoco interesse público, eis que, como se sabe, existindo conflito, este se sobrepõe ao privado na busca pelo interesse geral, ou seja, o da coletividade.

Ainda no recorte do tratamento de dados pessoais sensíveis em conformidade com o Regulamento Europeu, mesmo que não expressamente consentido, se por motivos de saúde, como de saúde pública e proteção social e de gestão dos serviços de saúde, caberá ao direito da União ou dos Estados-Membros determinar se o responsável pelo tratamento que exerce funções de interesse público deverá ser uma autoridade pública ou outra pessoa de direito público ou privado, natural ou jurídica.

A questão não é de simples enfrentamento, tanto que em Israel no último dia 19, o Supremo Tribunal de Justiça emitiu ordem suspensiva temporária determinando que a Agência de Segurança Israelense (Shin Bet) e a Polícia se abstenham de monitorar celulares de forma a identificar quem são os infectados pela COVID-19 e através de suas interações sociais, quem deverá cumprir o isolamento social de 14 dias a fim de achatar a disseminação viral.

A suspensão, ainda que temporária, foi determinada ante o receio de lesão ao direito de privacidade dos cidadãos israelenses, eis que a decisão de monitoramento foi prolatada por membros do gabinete de governo, sem a aprovação pelo Parlamento, o Knesset.  Para o Procurador Geral do Parlamento a utilização de dados de geolocalização de telefones celulares para rastrear pessoas infectadas pelo Sars-CoV-2 configura violação grave dos valores democráticos.

Segundo dados do rastreador de direitos digitais COVID-19 disponibilizado pelo site britânico Top10VPN[1], há medidas introduzidas em resposta à pandemia que representam flagrante risco para os direitos digitais, como por exemplo o rastreamento digital em 15 países, utilização de tecnologias avançadas de vigilância física em 4 e a censura relacionada ao COVID-19 imposta por pelo menos 5 governos.

Traçadas breves linhas sobre o cenário global, apesar do inegável interesse público e de toda discussão humanitária sobre a qual as ações de tratamento de dados de geolocalização no escopo de uma pandemia gravitam, a questão é controversa e há robustos argumentos que consagram as opiniões “contra” e a “favor” da medida.

Trazendo a questão para os estritos limites do convênio noticiado pela Prefeitura da Cidade Maravilhosa e a subsidiária da Telecom Itália (TIM), desde que os dados sejam/permaneçam  anônimos/anonimizados,  meramente geográficos e devidamente observada a estrita finalidade do tratamento, qual seja, mapear os focos epidemiológicos do vírus e pontos de alta concentração de pessoas com o objetivo de propiciar ao Poder Público a adoção de medidas de  contingenciamento da propagação da infecção, os dados poderão ser tratados sem que o referido tratamento configure lesão ou ameaça às liberdades individuais dos usuários geograficamente localizados na Cidade do Rio de Janeiro. Neste caso, sequer estaremos diante do tratamento de dados pessoais sensíveis.

Cientes que esta é apenas uma das inúmeras operações de tratamento de dados que se prestarão a auxiliar às autoridades brasileiras no exercício do múnus público, importantíssimo observar que a Lei 13.979/2020 dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, inclusive, quanto ao tratamento de dados pessoais.

Por fim, fica a advertência de que o tratamento dos dados pessoais com o objetivo de atendimento ao interesse público, não elide a responsabilidade dos agentes por eventuais danos suportados pelo titular em decorrência do referido.

O avanço das tecnologias da informação e comunicação que caracteriza a economia cognitiva e imaterial alicerce da Sociedade da Informação, representa enorme desafio ao direito, cujas elaborações, tradicionalmente, representam uma resposta às demandas sociais caracterizadas ao longo do tempo –  exatamente o elemento que não se dispõe em uma pandemia onde cada minuto é de imensurável importância para a manutenção do bem maior da pessoa, qual seja, a vida – assim, só nos resta adotar – sem recalcitrância – as medidas de prevenção determinadas pelas autoridades sanitárias e torcer que o dinamismo tecnológico consiga nos entregar a resposta de sobrevivência que o direito não alcança.

[1] https://www.top10vpn.com/news/surveillance/covid-19-digital-rights-tracker/

*Maria Luciana Pereira de Souza – advogada de Tecnologia, Mídia e Telecomunicações do CTA Advogados.

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