Do 5G ao WiFi: o futuro das rodovias conectadas brasileiras
Imagine o fim dos pedágios. Mas não porque a cobrança pra quem roda nas estradas vai desaparecer, mas por que os carros terão chips capazes de avisar quando entrarem em uma estrada e quando deixarem a via. A informação, captada pela rede da concessionária permitirá o cálculo automático de quanto aquele veículo deverá pagar. E será um cálculo proporcional: quem roda mais, paga mais. Isso é possível em rodovias conectadas.
Imagine, também, que a estrada é muito bem gerida e sinalizada, com placas frequentes de velocidade, avisos luminosos, e serviço de emergência de prontidão. Se tudo isso for conectado a uma rede de dados, poderá funcionar conforme as mutações constantes ao longo do dia em fluxo e operação da via.
Como assim? Digamos que em um trecho começaram obras no acostamento. Sistemas baseados em inteligência artificial poderiam captar o volume de tráfego que se aproxima e alterar a velocidade máxima das placas para que o fluxo seja constante e o trânsito não pare por excesso de veículos. Isso é possível em rodovias conectadas.
Outras placas informativas exibiriam alertas de obras na pista, a quantos quilômetros de distância, e poderia sugerir ao condutor mudar de faixa ou buscar a próxima saída para uma via alternativa. Isso sem a necessidade de ação de um ser humano por trás dos comandos, tudo acionado por inteligência artificial com base nos dados coletados por sensores e câmeras espalhadas ao longo da estrada e processados em data centers instalados nas margens. Isso é possível em rodovias conectadas.
No celular, o aplicativo da concessionária emitiria alertas mais detalhados, reunindo informações sobre a obra ou explicando se as equipes de emergência já estão se encaminhando a um local para lidar com algum incidente.
Acidentes, pneus furados, motores superaquecidos terão outro tratamento nas estradas no futuro. As câmeras de monitoramento identificarão, sem qualquer auxílio humano, quando um carro sai da pista ou para no acostamento e imediatamente aciona as equipes. O condutor recebe na hora o aviso de que um grupo de apoio se dirige ao seu local. Isso quando o próprio carro já não for capaz de avisar que está prestes a entrar em colapso.
Tais funções de rodovias conectadas usam tecnologias que já são conhecidas e estão disponíveis no mercado. Mas ainda não estão totalmente em uso nas estradas brasileiras porque a cobertura de rede não é contínua. Uma vez que haja continuidade, serão implementados os serviços avançados – ao menos, aqueles que não dependam de regulamentação dos departamentos de rodagem.
O Brasil, avaliam fabricantes de equipamentos de redes, está mais perto do que se imagina desse cenário graças à definição de metas no último leilão da Anatel, que condicionou a aquisição de espectro à cobertura móvel das rodovias federais até 2029.
Mas não apenas da rede móvel depende o futuro das vias. O WiFi também traz oportunidades e pode ser a base para a cobertura móvel do futuro (veja mais abaixo).
Uma rodovia de dados
“A informação gerada por um carro hoje é de, em média, 25 GB por hora. Esse volume pode chegar a 300 GB por hora nos modelos mais sofisticados. Mas nem tudo vai pra rede, muita coisa é processada pelo próprio veículo”, conta Wilson Cardoso, CTO da Nokia para a América Latina.
Para ele, o Brasil está no caminho certo ao definir em licitações obrigações de cobertura quando o assunto é tornar as rodovias inteligentes. “O Edital 5G determinou voz, e onde se faz voz, se faz IoT tranquilamente. Então, teremos infraestrutura daqui a três anos. Essa rede será suficiente para colher informações em tempo real e ter interações com a rodovia”, diz.
Ele conta que a Nokia trabalha com a perspectiva de que não apenas o carro vai “conversar” com a rodovia, mas com todos os veículos ao redor, o conceito V2X. “No futuro, vai ter comunicação device2device, para informar se carros estão freando ou acelerando, de forma que os veículos à frente ou atrás vão reagir automaticamente”, acrescenta. Tecnologia com potencial para evitar 1,3 milhão de mortes no trânsito todo ano, no mundo, estima.
Outras soluções podem surgir disso. “A BMW obtém informações das condições das estradas nos EUA a partir dos dados coletados pelas suspensões dos carros, e informa para as autoridades taparem buracos”, conta.
Para Cardoso, o carro 100% autônomo, no entanto, ainda está distante. Tanto pelas zonas de sobra das rodovias, quanto pela legislação. “É algo que depende de operadoras, dos governos e das fabricantes de veículos, uma evolução que não deve se dar em curto prazo”, diz.
As estradas do futuro deverão ter, no entendimento de Cardoso, da Nokia:
- conectividade capaz de permitir o update em tempo real e a manutenção preditiva dos veículos;
- equipes de emergência munidas de equipamentos de realidade aumentada para fazer a manutenção e atendimentos específicos com supervisão técnica;
- uma nuvem e processamento de borda ao logo da sua extensão para aplicações V2X (‘veículos para tudo’) sem gargalos;
- Sistemas de Transporte Inteligente (ITS), já regulamentados pela Anatel, que conectam veículos, trabalhadores na borda da rodovia, usuários, e plataformas de controle de tráfego inteligente;
- uma nuvem interativa com o sistema de comunicação das rodovias junto aos usuários.
A fabricante de equipamentos para redes móveis já imagina o que virá depois disso, quando 6G for realidade a partir de 2030. “No 6G, não precisaria nem dispositivos nos veículos para fazer todas as operações e processamento. As próprias antenas das redes fariam o sensoriamento avançado e alimentariam a nuvem”, prevê.
4G é suficiente, mas…
Outra fabricante de equipamentos para redes móveis, a Ericsson, vê o 4G como tecnologia viável e suficiente para garantir a digitalização das estradas brasileiras. Segundo Marcos Scheffer, VP de Redes e Serviços Gerenciados da empresa, diz que a quarta geração já é suficiente para o setor logístico acompanhar a carga ao longo do trajeto, identificar se o caminhão está com tanque cheio, se o caminhoneiro está perto da parada prevista, se os pneus estão com pressão anormal e se o baú está na temperatura adequada.
Também permite o uso de câmeras nos caminhões que filmam o motorista para alertar se está com sono, se está embriagado, e a parte externa do veículo em busca de alguma irregularidade.
“As empresas logísticas conseguem economizar 6% no custo total com o rastreio. Um terço dessa economia vem de gerenciamento do motorista, do tacógrafo, do eco drive [direção econômica]. E outros dois terços, do monitoramento do caminhão e do controle de temperatura dos containers”, diz, citando estudo feito pela companhia ainda em 2020.
A seu ver, o futuro da conectividade nas estradas depende pouco das concessionárias de rodovias, e mais das operadoras. O desafio é cobrir longas extensões de forma rentável. A seu ver, o modelo a ser inaugurado pela Winity, de uma rede neutra móvel para uso de todas as operadoras celulares, é o que faz mais sentido. A operadora está com uma concorrência aberta entre fabricantes para comprar os equipamentos a serem ligados nas pistas.
“As concessionárias de rodovia já enfrentam editais em que precisam levar conectividade. Uma opção é contratar a conectividade das operadoras. Mas aí precisa ser de todas, para garantir que os usuários não fiquem descobertos”, explica.
Scheffer tem na ponta da língua a qualidade da cobertura das rodovias brasileiras, nas quais a tecnologia predominante é o 3G. “São 122 mil km de malhas federais, 84 mil km cobertos por alguma tecnologia móvel. Ou seja, 68,8% têm cobertura. O 5G ainda está bastante limitado, atende 7,7 mil km, ou 6,3% das rodovias com rede móvel. O 4G atende 77 mil km, 63,5% do total. O 3G tem a maior cobertura: são 80,4 mil km, ou 66,8%. E o 2G tem 55% de cobertura”, elenca.
Alguns estados estão mais preparados para a logística do futuro. Em São Paulo, 95,7% das estradas têm cobertura móvel. No Rio de Janeiro são 94,8% das estradas. E em Alagoas, 94,2%. Amazona (6,3%), Roraima (15.2%) e Amapá (17,3%) têm as estradas estaduais mais sombreadas.
Pelas contas da Ericsson, a cobertura móvel das estradas vai exigir a instalação de 15 a 20 mil sites (torres).
WiFi: cobertura não depende só do móvel
Flavio Hott, diretor de soluções para verticais de transporte e energia da Huawei, defende que tanto o WiFi, quanto a tecnologia móvel, devem ser utilizados na cobertura das rodovias. Mas que o primeiro traz oportunidade de rentabilização para as concessionárias das estradas.
“Fizemos no Brasil a primeira rodovia conectada com WiFi em toda sua extensão. Foi implantada em 2018, a Tamoios (SP), que tem duas camadas de conectividade: a parte óptica e o WiFi de ponta a ponta. Fizemos a Entrevias, a Eixo SP, todas com WiFi 6 de ponta a ponta e fibra, e a estrutura pertence à concessionária da rodovia”, conta.
A fabricante aborda as concessionárias como potenciais clientes de redes privativas. Assim, desenvolveu produtos industriais para as exigências específicas das estradas. Tem aplicação de pedágio sem praça, radar inteligente, data center capaz de identificar intrusão nos equipamentos.
“Hoje ainda não existe um modelo provido pelas operadoras móveis que atenda 100% desses requisitos. Como as operadoras visam o tráfego de voz, muitas vezes não faz sentido prover conectividade nos 1.000 km de uma rodovia, elas focam nos trechos mais movimentados”, aponta.
O 5G entregará muitas das promessas das rodovias hiperconectadas, mas o executivo acredita que não dá para esperar a tecnologia se disseminar, uma vez que as metas de cobertura das rodovias federais obrigam o uso de, no mínimo, o 4G até 2029.
“Nossa posição é investir no WiFi já, pois consegue entregar a tecnologia e a conectividade agora. Quando o 5G for uma realidade, existirá a integração com o WiFi, o investimento não será perdido. A infraestrutura será compartilhada, já que o 5G tem células bem menores que o 4G, como no WiFi. As concessionárias poderão negociar acesso das operadoras às mesmas estruturas onde hoje instalaram os pontos WiFi”, prevê.
A Huawei está por trás da implantação da infraestrutura que suportará o Free Flow.
A tecnologia está chegando ao Brasil. Já é testada na BR-101 (Rio-Santos). O sistema dispensa a construção de praças de pedágio e cobra os veículos ao reconhecer a placa ou ao identificar uma tag instalada no para-brisa. Não é preciso reduzir a velocidade. Sensores reconhecem quantos eixos tem o veículo e faz a tarifação automaticamente. A CCR RioSP cobra ainda tarifas diferentes em fins de semana e feriados nacionais e calcula descontos conforme a assiduidade do usuário. A tecnologia foi ativada há quatro meses. O usuário recebe a cobrança e, se não pagar, está sujeito a multa.
Outras razões para Hott defender o WiFi como viável nas rodovias é a tecnologia própria de handover, “conseguimos garantir a conexão WiFi a 120 Km/h”, e a expectativa de que surjam carros capazes de se conectar por eSIM às redes móveis e também às redes WiFi, para lidar com a descontinuidade da cobertura móvel. “Já existe uma fabricante testando essa tecnologia de híbrido na conectividade”, afirma.
Em suma, pode ser que o Brasil, depois de ser o berço do caro flex fuel, se torne também o local de surgimento de veículos flex net.