Campos: Corte alemã pavimenta caminho para o “fair share”
Por Ricardo Campos*
O tema do fair share tem sido um dos principais e mais importantes nas discussões sobre a regulação do espaço digital dos últimos anos. E não por acaso. Pela primeira vez, liga-se níveis até então invisíveis no debate: a relação entre a infraestrutura de telecomunicações regulada pelo Estado e os serviços digitais privados e desregulados, prestados por empresas estrangeiras, que estruturam a comunicação diária da população. Ao repensar e rediscutir o atual modelo de financiamento de tal infraestrutura, as propostas em torno do fair share voltam-se, primordialmente, a uma dimensão pública do debate sobre como de fato garantir conectividade significativa para um país já com graves problemas sociais. Portanto, o aparente confronto entre atores econômicos (operadoras de telecomunicações e grandes provedores de conteúdo e aplicações) deve ficar em segundo plano.
O debate possui várias camadas e, por isso, não é simples: há uma importante camada factual baseada em dados concretos sobre o real uso da infraestrutura e seu modelo atual de financiamento, há uma camada jurídica e uma camada politico-regulatória. Nesse artigo, tratarei especificamente das duas últimas, deixando para um próximo a dimensão política e internacional sobre o tema.
Primeiramente, seria importante ilustrar a camada de dados. Aqui, é preciso diferenciar os dados já disponíveis acerca da relação entre serviços digitais e uso da infraestrutura no plano global e no plano nacional. No plano global, segundo o Sandvine Global Internet Phenomena Report de 2022¹, 56% do tráfego de internet foi gerado por seis grandes empresas de tecnologia, com a Alphabet (Google) liderando o ranking, com 21% do tráfego. Em seguida, estão Meta (15%), Netflix (9%), Apple e Amazon (4%) e Microsoft (3%). No plano nacional, a renomada empresa de consultoria Alvarez e Marsal trouxe, em estudo recente², dados concretos sobre tal relação que também é de concentração da geração do tráfego por poucas empresas. Cerca de 70% do tráfego nas redes de acesso é gerado por cinco principais usuários, com a Meta na liderança (22%), seguida do Google (18%), da Netflix (11%), da Akamai (12%) e do Tiktok (1%) – considerando redes fixas e móveis. Se considerarmos apenas os dados moveis, Meta desponta com 46%, seguida do Google (16%), TikTok (4%) e Akamai (3%). Diante de tais dados, que refletem o atual modelo de financiamento da infraestrutura global e brasileira, resta a pergunta: qual a real contribuição dos grandes usuários?
Já a camada jurídica, que vem sido obscurecida especialmente pela absolutização do princípio da neutralidade de rede³, passou a ganhar novos e concretos contornos com o caso decidido no mês de maio pelo Tribunal Regional de Colônia, na Alemanha, no qual ficou decidido que a Meta tem de pagar pela utilização da infraestrutura de telecomunicações. Vamos então à descrição dos fatos e à também a descrição da quaestio iuris.
Aos fatos: no meio da crise do coronavírus, a Meta rescindiu um contrato de transporte de dados com a Deutsche Telekom, suspendendo assim os pagamentos referentes à utilização do total de 24 “interconexões privadas”, ou seja, pontos de transferência, em várias localidades. Estes teriam sido utilizados exclusivamente pela Meta, para oferta de acesso aos serviços online do Facebook, Instagram e Whatsapp, com uma taxa anual dependente da largura de banda. Interessante, entretanto, é o que ocorreu durante o processo.
Conforme cita o Tribunal Regional de Bonn₄, apesar de ter, por dez anos, remunerado tal serviço, a Meta declarou, em meados de fevereiro de 2021, que passaria a utilizar gratuitamente as interconexões privadas, de acordo com o padrão do setor de peering. A Telekom, por sua vez, respondeu que manteria a prestação dos serviços, faturando-os nas mesmas condições contratuais anteriores. Justamente esse impasse acabou por levar o caso ao Tribunal Regional de Bonn. Três anos após o início do processo, a sentença foi proferida em maio de 2024⁵ acolhendo integralmente o pedido da Telekom. Caso a Meta interponha recursos, o caminho processual levaria o caso ao Tribunal Regional Superior de Düsseldorf e depois, eventualmente, ao Bundesgerichtshof, o equivalente funcional alemão ao nosso Superior Tribunal de Justiça.
Ao direito: do ponto de vista da dogmática alemã, o caso também é bem interessante. A base do pedido invocou os parágrafos 611 (1) e 612 do Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil alemão)⁶, no qual está presente o espírito da máxima romana “protestatio facto contraria non valet”⁷. Para o caso em tela, apesar de a Meta ter cessado a continuidade do contrato com a Telekom, ou seja, de não haver base contratual formal, ela continuou a se valer da rede da empresa para fazer seus produtos e serviços chegarem ao consumidor final. Uma declaração expressa na forma contratual ou não contratual que contradiga um comportamento efetivo geraria uma aceitação implícita de vínculo contratual, como já positivado no código civil alemão §612 BGB⁸. Essa foi a base argumentativa do Tribunal Regional de Colônia neste caso: a Meta não poderia declarar a quebra de vínculo contratual, por um lado, e continuar a se valer do serviço, por outro, sob risco de uma contradição entre comportamento efetivo e comportamento abstrato-formal. Não há neutralidade de rede que justifique a não remuneração de um serviço prestado afetando a expansão da infraestrutura que garante a vida digital da economia e da população como um todo.
O valor da causa decidido pelo Tribunal de Colônia, apesar de alto, é secundário frente ao contexto em que a decisão se insere. A conclusão do Tribunal sinaliza um novo cenário: que as operadoras de rede na Europa podem exigir o pagamento de grandes provedoras de serviços digitais pelo transporte de dados, ou seja, pela prestação de seus serviços. E aqui se inserem também várias nuanças do debate: poderiam as empresas de telecomunicações exigir pagamento mesmo tendo contrato de peering gratuito? Ou caberia uma reanálise dos contratos já existentes por um desequilíbrio entre prestação e valor pago? Qual seria o critério para remuneração de uso de rede caso contratos entre provedoras de serviços digitais e de telecomunicações não chegassem a novo acordo? Todos esses caminhos se dariam por via judicial. Mas há também a solução regulatória que, evitando a judicialização do tema, buscaria corrigir essas distorções no mercado que afetam diretamente a infraestrutura e a conectividade da população. Essa solução poderá ser construída pela Anatel a partir da tomada de subsídios nº 26/2023 e possível regulamento sobre grandes usuários. Os números acima elencados já oferecem uma base concreta para a construção de uma solução voltada para o interesse público. O white paper da Comissão Europeia “How to master Europe’s digital infrastructure needs?” atualmente sob consulta, propõe como solução um mecanismo arbitral para litígios contratuais dessa especie como forma eficaz de regulação. Esse também poderia ser um interessante caminho para o Brasil.
¹ SANDVINE, 2022 Global Phenomena Report, disponível em https://www.sandvine.com/global-internet-phenomena-report-2022
² ALVAREZ & MARSAL, Modelo de remuneração de prestadoras de serviços de telecomunicações por grandes usuários: uso responsável e sustentável do sistema, 29 de maio de 2024, disponível no link.
³ Sobre tal debate, ver CAMPOS, Ricardo, A Nova Relação Entre Infraestrutura e Serviços Digitais: fair share, neutralidade de rede e sustentabilidade digital. São Paulo: Editora Dialética, 2024.
⁴ Landgericht Bonn, Beschluss vom 10.02.2023, 30 O 83/21.
⁵ Urt. v. 15.05.2024, Az. 33 O 178/23
⁶ Bürgerliches Gesetzbuch (BGB)
§ 611 Vertragstypische Pflichten beim Dienstvertrag
⁷ CORDEIRO, Antonio Menezes. Tratado de Direito Civil v. II, Parte Geral. 5ª ed, atualizada. Coimbra: Almedina, 2021.
⁸ SÄCKER, Franz; et. al. Münchener Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch. München: Beck, 1992.
* Ricardo Campos é Docente na Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha); doutor e mestre pela Goethe Universität; coordenador da área de direito digital da OAB Federal/ESA Nacional; diretor do Instituto Legal Grounds (São Paulo).