O satélite da Telebras custou R$ 2,8 bilhões. Do seu, do meu, do nosso dinheiro.

Ao se distanciar dos objetivos iniciais do lançamento do SGDC na exploração de sua banda civil e vender a operadoras privadas sua capacidade, a Telebras começou a sua via crucis. O ponto final do cipoal de erros é um contrato, sem transparência, com a empresa dos Estados Unidos Viasat, contestado na Justiça, e que precisa ser revisto.

Satelite-Telebras

O presidente da Telebras, Jarbas Valente, resolveu atirar contra o que chama de “interesses de mercado” para tentar justificar o inexplicável. Sob o estranho argumento de que se baseia em um procedimento conhecido por “chamamento público”, e não uma licitação, a empresa decidiu fechar um contrato com uma companhia dos Estados Unidos, que sequer tem sede no Brasil. Fez um contrato secreto (até mesmo para a justiça), de tal forma que até hoje nem o mercado, nem quem pagou por ele (nós os contribuintes brasileiros) sabemos, afinal, o que essa empresa vai de fato fazer com um satélite que custou, conforme a própria estatal, R$ 2,8 bilhões.

Para fortalecer essa estranha posição, o executivo argumenta em diferentes notas e entrevistas, que a Telebras se rege por regras do direito privado e  nunca foi obrigada a realizar este procedimento competitivo”. Em outras palavras, Valente está dizendo que a estatal não precisa dar satisfação a ninguém­ sobre o que assinou. Tanto é assim que enviou para a Justiça um contrato com tantas tarjas pretas que permitem, a cada momento, um argumento diferente sobre o que de fato está nele.

Para se respaldar, a empresa alega também que está cumprindo determinação do Tribunal de Contas da União (TCU), já que “o acórdão do TCU 2.033/2017 do Tribunal de Contas da União  referendou a tese de que a Telebras, na comercialização de sua capacidade, está vinculada à Lei 13.303/2016”.

Só que essa lei – conhecida como a Lei das Estatais – diz expressamente que as empresas de economia mista (e portanto empresas públicas, e não privadas, como quer fazer entender a estatal) devem manter as mesmas condições do contrato, caso queiram passar por uma nova fase. Ora, quem diz isso é nada menos do que a Procuradora Geral da República.

Em seu parecer, Raquel Dodge afirma: “Causa estranheza o contrato celebrado, poucos meses depois do edital de chamamento, entre a Telebras e a Viasat para a operação de 100% da banda Ka do SGDC. Ao se levar em conta as premissas assentadas pelo Tribunal de Contas da União no citado Acórdão 2033/2017, fica muito difícil não notar irregularidades na parceria em questão, restando claro que a estatal não adotou as recomendações do órgão de contas. Isso porque, embora a União insista na afirmação de que – na realização de sua atividade finalística – não está a Telebras obrigada a licitar, tendo o acordo com a Viasat sido firmado com base nos arts. 173 da Constituição e 28–§3o da Lei 13.303/20162, efetivamente houve, antes da contratação direta, a tentativa de se promover uma seleção pública para a comercialização da capacidade satelital do SGDC. Assim, ainda que não se queira denominar licitação, fato é que se promoveu um procedimento concorrencial, com regras definidas por meio do edital de chamamento público, cujo objeto era a seleção de empresas concessionárias, permissionárias ou autorizatárias de serviços de telecomunicações para tornarem-se cessionárias de capacidade satelital em banda Ka do satélite brasileiro.”

A Procuradoria constata o óbvio. Pode não ser licitação, pode ser chamamento, pode ser qualquer nome que se queira, mas houve uma seleção pública para o mercado. Privado. É estranho que, agora, a Telebras alegue que o mercado para o qual ela ofereceu o satélite está reagindo ao segundo contrato.

Objetivos estratégicos e sociais

Antes desta licitação, ainda nos governos Lula e Dilma, o satélite foi construído e lançado com diferentes objetivos: dar autonomia às comunicações militares, posicionar o Brasil como um país a desenvolver tecnologia de ponta (por isso, a criação da joint-venture com a Embraer) e atender a políticas públicas de levar banda larga para onde não há oferta de mercado, seja por meio de parcerias com os pequenos provedores, seja com oferta direta.

Pois o novo governo decidiu privatizar o lado civil desse satélite. Mesmo que alegasse falta de dinheiro – o que seriam mais alguns milhões para a compra das antenas, depois dos bilhões alocados na construção do satélite? -, a empresa poderia tocar sozinha o projeto, ou poderia mesmo vender até uma pequena parte de sua capacidade para ficar mais protegida dos cortes orçamentários. Mas a nova direção preferiu lançar à venda toda a capacidade do satélite construído com os recursos do contribuinte.

As condições dessa licitação – mesmo depois de road shows por Nova Iorque e Londres – não atraíram a iniciativa privada. Essas não são as regras do jogo privado? Quantas licitações ficam sem interessados? Seja porque as garantias eram muito altas, seja porque as obrigações para a ocupação dos feixes eram muito áridas, seja porque já havia cláusulas pouco claras no primeiro edital, ele ficou vazio.

Qual seria, então, a saída? Usar mais um pouco do seu, do meu, do nosso dinheiro e comprar o que faltava para o satélite começar a cumprir sua função social, ou estimular uma nova disputa entre o mercado privado. Mas a estatal preferiu fechar contrato com uma única empresa que nunca teve atuação no país. A estatal alega que não precisa convocar licitação, pois está vendendo petróleo para todos, como a Petrobras faz.

Argumento sem fundamento. A Viasat, escolhida por critérios que só a Telebras sabe, não é uma empresa de economia mista. Ao contrário, é uma empresa privada dos Estados Unidos. E o contrato confere a exclusividade para essa empresa para instalar as antenas dos usuários, fazer a sua manutenção, além de prestar serviço para a população em geral por vários anos. Aliás, o próprio presidente da estatal afirma que haverá “partilha de receita”. Só não explicou quem pagará a quem.

Comenta-se no mercado (o que foi negado pela estatal, que não explicitou, no entanto, qual, de fato, é o montante que vai desembolsar) que a Telebras terá que pagar pelo menos R$ 60 milhões para a Viasat. Com esse dinheiro, ela não poderia ter feito a licitação para comprar as antenas que faltam?

No “chamamento” para o mercado privado não só a Telebras não iria desembolsar nada – uma das condições para a compra dos outros lotes seria implantar os acessos do lote da estatal – como o Estado teria garantias reais: ou seja, dinheiro injetado na veia dos cofres públicos pelos entes privados.

Entre as diferentes liminares já concedidas pela justiça, um argumento merece destaque:“O contrato firmado pela Telebras com a empresa Viasat – de compartilhamento de 100% da exploração da banda Ka do satélite brasileiro – constitui verdadeiro esvaziamento da função da estatal como responsável pela operação da banda civil do SGDC, sem qualquer reserva de exclusividade que garanta a implementação dos objetivos do Programa Nacional de Banda Larga – PNBL”, disse a juíza Federal para negar a suspensão da liminar.

Acordos privados

Em entrevista à Folha de S.Paulo de ontem, 15, o presidente Jarbas Valente diz que as cláusulas de confidencialidade não se devem à estatal, mas sim à empresa norte-americana, que tem ações em bolsa nos Estados Unidos. Quer dizer que os acionistas norte-americanos têm prioridade sobre os acionistas brasileiros, da Telebras, que não podem saber o que foi assinado em seu nome?

Em entrevista ao Teletime, o presidente diz também que, após a licitação deserta, foram procuradas todas as empresas que poderiam se interessar pelo projeto e a melhor proposta foi com a Viasat. Ora, se as condições do “chamamento, que não é licitação” mudaram, por que não fazer essa oferta de maneira pública, transparente, para diferentes empresas competirem entre si?

Como frisou a PGR, “é sim temerário que 100% dos dados operacionalizados na banda Ka do satélite brasileiro – incluindo as referidas demandas da Administração Pública – estejam sendo compartilhados com a empresa americana Viasat, principalmente levando-se em consideração  que as regras de confidencialidade das informações firmadas entre as parceiras não são conhecidas. Tampouco sabe-se acerca das obrigações da organização estrangeira para com o seu Estado-nação.”

Para a Justiça e para a Procuradoria, não adianta imputar a quem recorreu à Justiça a responsabilidade pelo fato de o satélite – que tem vida útil de 17 anos – não estar operando. É o momento de a Telebras parar de agredir nós os contribuintes brasileiros, cancelar esse contrato e fazer o que deveria ter feito desde o começo, e passar a fazer o atendimento de demandas sociais (que são inúmeras), o que um país das dimensões e das carências do Brasil nas área de educação e saúde tem de sobra.

Mas se seus técnicos considerarem que a licitação para a contratação das antenas para atender aos usuários públicos e sua manutenção, em função do ritual burocrático de uma estatal, vai ainda consumir muito combustível inútil do satélite em órbita e se for mais rápido, que se contrate os serviços  de empresa privada. Mas numa licitação, chamamento público ou nome que se queira dar com regras claras e transparentes, que possa ser acompanhada pela sociedade e seus representantes, pelos órgãos de controle do governo, pelos acionistas minoritários da empresa, enfim, pelo contribuinte, que é quem pagou a conta para o Brasil ter um satélite que se chama Satélite Brasileiro de Defesa e Comunicação.

 

 

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Miriam Aquino

Jornalista há mais de 30 anos, é diretora da Momento Editorial e responsável pela sucursal de Brasília. Especializou-se nas áreas de telecomunicações e de Tecnologia da Informação, e tem ampla experiência no acompanhamento de políticas públicas e dos assuntos regulatórios.
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