O direito de uso e seus impactos fiscais
* Marcos Catão
*Veronica Souza
O indefeasible right of use – IRU é um negócio jurídico atípico, construído
com base no direito consuetudinário das telecomunicações. Em decorrência, incorpora naturalmente premissas inerentes aos regimes de common law, o que não o impede de ser aplicável nas mais distintas jurisdições, entre as quais o Brasil, por força do princípio da autonomia contratual. Longe de parecer uma abordagem teórica, partir dessa constatação é fundamental para se entender as consequências jurídicas, fiscais e contábeis derivadas da contratação de IRU´s por empresas
brasileiras de telecomunicações.
Sua natureza jurídica é híbrida, já que em determinadas circunstâncias assume traços típicos da aquisição de um domínio (right of use), e, por vezes a característica de uma prestação de serviços. Daí a relevância da expressão “indefeasible”, a qual, se traduzida livremente, nos leva ao conceito de irrevogável (“irrevokable”). Claramente a finalidade em se atribuir ao IRU a característica de irrevogabilidade é a de enfatizar o exercício de um domínio por parte do adquirente de um IRU. Nesse
sentido, embora no Brasil não seja possível tipificar o contrato de IRU como direito de propriedade imobiliária, uma vez que exigiria a transcrição em registro público para sua validade, não deixa de ser notadamente o exercício de um domínio, tanto na modalidade de fibra acesa, quanto no de fibra apagada.
Não por outra razão que em um dos principais precedentes que examinaram a natureza jurídica dos IRU´s (NY Bankruptcy Court Southern District in Worldcom vs PPPL Prism) se afirmou taxativamente que o IRU é, a priori, propriedade (property), e, por conseguinte, garante ao seu contratante todos os direitos (e deveres) inerentes aos que exercem a posse de algo com animus dominis. À sua vez, embora se possa partir da premissa que a contratação de um IRU é a aquisição de um ativo, cabe ressaltar que nem sempre a sua contratação se restringe a aquisição de um domínio, como antes enfatizado, notadamente nos casos de contratos
complexos. É que para se caracterizar a aquisição de um domínio sobre a
capacidade em cabos e fibras, é necessário o concurso de outros elementos, como a contratação por tempo certo e de forma antecipada, o que não necessariamente significa a necessidade de pagamento a vista por todo o período de validade do contrato (upfront payment), e o gerenciamento do ativo.
Assim, uma vez identificadas as características próprias da aquisição de um domínio, o IRU não se submeterá à tributação como prestação de serviços, ou pela locação de bens móveis ou imóveis. Aqui importa distinguir que se trata da aquisição de um ativo intangível, não identificado, mas “identificável”, posto que em essência o IRU é um bem imaterial “identificável” (identifiable). Quando se contratam IRU´s em um ou vários cabos de telecomunicações, sem a identificação precisa do local de consumo, não se pode afirmar com precisão em que ponto o domínio está sendo exercido. Por isso, o IRU é um ativo intangível, seja na sua
configuração inicial (vg. como forma de financiar a construção de cabos e
fibras) assim como em caso de sua posterior comercialização.
Trata-se de um domínio atípico, próprio da intangibilidade do mundo das
telecomunicações e das novas tecnologias, os quais dispensam a individualização do bem para caracterizar o exercício de um domínio. Assemelha-se às frequências das redes de telecomunicações quando adquiridas como ativos integrados às infraestruturas físicas. Portanto, não obstante a temática do IRU ser abordada por pronunciamentos contábeis (IFRS16 incorporado no Brasil ao CPC 06), a interpretação dos enunciados ali contidos deve ser mitigada. Primeiramente porque esses pronunciamentos, seguindo uma lógica binária que lhes é característica,
se valem de exemplos muito restritos, para impor uma classificação quanto à sua natureza jurídica, a qual, obviamente, reclama uma interpretação de cada negócio jurídico e de seu respectivo arranjo contratual.
Não menos prudente deve ser a interpretação dos pronunciamentos em relação a contratação de IRU´s, pelo fato de que partem de um conceito mais amplo de bens tangíveis ou mesmo intangíveis, os quais podem ser “identificados”. Por isso, a premissa de que para a caracterização de um ativo, o contratante de um IRU deva ter um percentual relevante de um cabo ou fibra (bens tangíveis) não é a mais correta. Tal se deve ao fato de que com o desenvolvimento das tecnologias, em apenas um único par de fibras se pode fazer trafegar capacidade de comunicação para centenas de milhões de pessoas.
Vários proprietários
Consequentemente, um único cabo pode ter diversos de proprietários de IRU´s, o que é, de per se, antitético à ideia de um proprietário majoritário do ativo. Por exemplo, uma operadora que participa da construção de um cabo submarino (individualmente ou em regime de consórcio), ligando um ponto A do Brasil para um ponto B no exterior, pode celebrar contratos de IRU com outras operadoras brasileiras e estrangeiras para ceder o direito de uso sobre a fração do cabo que
excede a sua própria necessidade.
Logicamente tal dispersão no controle da capacidade total de um cabo ou fibra, afasta a imprescindibilidade de percentual de utilização de um ou mais cabos, como requisito essencial para a caraterização de um IRU como ativo intangível. Sob outra ótica, o domínio se exerce sob a capacidade contratada plena, e não sobre o ativo tangível como um todo. Dessa forma, a remissão aos pronunciamentos contábeis para a definição quanto os efeitos financeiros na contratação de IRU´s devem ser examinados com cautela, a partir de minuciosa análise casuística contratual e não por assunções unívocas. Caso contrário, os efeitos de índole societária e contábil e fiscal, tanto na tributação direta quanto indireta podem restar distorcidos em face de cada realidade nacional.
*Marcos André Vinhas Catão
Advogado e Diretor da Associação Brasileira de Direito Financeira e da
International Fiscal Association (IFA)
*Veronica Melo de Souza
Mestre em Direito Tributário pelo King´s College London