Leonardo Morais: neutralidade da rede e inovação
Leonardo Euler de Morais
O uso da Internet é apontado como a principal “fonte do processo inovativo”, consoante Pesquisa de Inovação Tecnológica (Pintec), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De fato, as inovações propiciadas pela conectividade inerente à Internet são inquestionáveis e perpassam os mais diversos setores econômicos. Nenhuma outra tecnologia mudou tão radicalmente a forma como vivemos e trabalhamos em um curto espaço de tempo. Mas apenas nos últimos anos começamos a vislumbrar o verdadeiro potencial da Internet para chamada destruição criativa apontada por Schumpeter(1).
Apoiada na Internet como a “Grande Rede” de comunicação há uma infinidade de segmentos econômicos e sociais que se valem das redes de telecomunicações para inovarem, mas que não integram o setor de telecomunicações ou mesmo os setores a ele conexos. De tal sorte que as redes de telecomunicações jogam um papel fundamental nesse fenômeno de inovação, uma vez que servem de suporte para a conexão à Internet. Conforme Pinheiro (2012):
As redes de telecomunicações destinam-se, fundamentalmente, à comunicação, tendo ampla aplicação em atividades sociais, econômicas, políticas e culturais. São verdadeiras infovias da informação e do conhecimento, revelando-se como o suporte físico à comunicação, mas também como importante locus para processos de desenvolvimento de inovações e de difusão tecnológica. Essa vocação deve-se à velocidade com que as informações nela circulam, à supressão de limites espaciais, à superação de barreiras sociais ou interrelacionais que normalmente separariam os atores, bem como à multiplicidade de formas de acesso às redes, contextualizadas pela tecnicidade de suas arquiteturas e alicerces institucionais.
Daí decorre a importância das redes de telecomunicações, que consistem em conexões conjuntas e sistemáticas de suportes e meios de telecomunicações entre emissores, receptores e operadores, em determinado espaço geográfico.
A autora recorre a Ortiz (2003) para concluir que não há telecomunicação sem rede. Dita infraestrutura, além de conformar a infraestrutura básica para o tráfego de informações (sons, dados e imagens), constitui o núcleo de todo o sistema de telecomunicações.
A questão que se pergunta, atualmente, é qual o modelo de gestão de rede pode maximizar tal processo inovativo da Internet. Em outros termos, qual desenho institucional melhor potencializa o espaço para inovação possibilitado pela Internet? Segundo Lemley & Lessig (2003) “ninguém entende completamente a dinâmica que permitiu a inovação na Internet”. Diante disso, será possível e plausível estipular um modelo exato para o futuro da Internet que maximize todo o potencial inovador da “Grande Rede”? Talvez não exista fórmula para estipular que a Internet deve encaixar num determinado modelo. Por outro lado é razoável facultar ao mercado um espaço demasiado livre?
Esse debate é complexo e tem suscitado bastante controvérsia, como é o caso verificado nos Estados Unidos. Também foi endereçado no Brasil com a aprovação da Lei nº 12.965, de 23/04/2014, o chamado Marco Civil da Internet.
DO DEBATE SOBRE NEUTRALIDADE DE REDE
Um aspecto central nessa discussão diz respeito ao termo cunhado por neutralidade de rede. No que concerne ao tema neutralidade de rede há pouco consenso entre estudiosos, formuladores de políticas públicas, reguladores, representantes da indústria, das empresas de telecomunicações, dentre outros atores, quanto ao conceito desse termo. De outro modo, o único consenso existente é que não há definição comumente aceita do que se refere por neutralidade de rede.
Segundo Pires, Vasconcellos e Teixeira (2009), “princípio genérico de neutralidade pode então ser analisado sob vários pontos de vista: econômico, social, político e de liberdades individuais. Ou seja, os detalhes dessa discussão passam, assim, por temas variados que vão desde a eficiência econômica, à liberdade política e à liberdade de expressão de ideias”. Essa assertiva é aderente à constatação de que são muitos os interesses envolvidos na Internet.
Sendo assim, é importante apresentar interpretações mais amplamente utilizadas de neutralidade de rede, bem como intentar descrever algumas medidas de gestão de tráfego possíveis de serem levadas a cabo pelos detentores de infraestrutura de rede (costumeiramente referidos na literatura por Internet Service Providers, ISPs) que contradizem a definição mais pura de uma rede neutra.
Na ausência de uma definição padronizada de neutralidade de rede, o Organismo de Reguladores Europeus das Comunicações Eletrônicas (BEREC) (2) assim definiu o termo(3):
Uma interpretação literal de neutralidade de rede, para fins do presente trabalho, é o princípio de que toda a comunicação eletrônica que trafega por uma rede é tratada igualmente. Isso significa que toda comunicação recebe tratamento igualitário independentemente do seu (i) conteúdo, (ii) aplicação, (iii) serviços, (iv) dispositivo, (v) endereço do remetente e (vi) endereço do destinatário. A ideia de rede neutra em relação aos endereços do remetente e destinatário implica que o tratamento é independente do usuário final bem como do conteúdo/aplicação/provedor de serviço.
Nessa mesma esteira, o Marco Civil da Internet endereça o tema neutralidade de rede em comando normativo que dispõe que “o responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação”.
Já Tim Wu(4), um dos mais renomados estudiosos do tema, sustenta que:
Neutralidade da rede é mais bem definida como um princípio do design da Internet. A ideia é que o máximo aproveitamento da informação pública da Internet aspira o tratamento equânime de todo o conteúdo, sites e plataformas.
Cristopher S. Yoo, também destacado debatedor do assunto, sugere que neutralidade de rede requer, grosso modo, que o tráfego seja roteado por provedores de rede sem levar em conta a origem ou o conteúdo dos pacotes de dados que transitam na Internet, o aplicativo com o qual os pacotes estão associados ou a disposição do remetente a pagar.
Outras proposições de conceito sobre neutralidade de rede apontam para a garantia de que todos os serviços são prestados a todas as partes com a mesma qualidade de conexão à Internet, sem degradação com base no serviço escolhido pelo usuário final e ao mesmo custo. Esta definição é baseada na suposição de que os dados são transmitidos em uma base de “melhores esforços”, com exceções limitadas.
Sem embargo, definições desse tipo são, de certa forma, desafiadas pela realidade de uma Internet que requer alguma gestão do tráfego para garantir uma operação eficiente para todos os usuários e para evitar a degradação do serviço.
Explico. Quando o uso mais recorrente da Internet está associado a ferramentas como e-mail e web browsing, o desempenho de rede para a prestação do serviço não demanda o estabelecimento de altos níveis de garantias de qualidade. Entretanto, a expansão do uso da Internet para serviços multimídia avançados, incluindo vídeos, voz e jogos interativos realça a importância de fluxos ininterruptos de dados. Ou seja, a oferta das aplicações sensíveis ao atraso, como videoconferência, jogos interativos ou serviços de voz sobre Internet, serão muito dependentes do gerenciamento da rede.
Grande parte dos ISPs já detém equipamentos que permitem detectar como os usuários utilizam sua conexão. Podem apontar, por exemplo, o número de sítios web que um usuário acessa ou se os clientes utilizam sua conexão para jogos on-line ou streaming de vídeo, ou para outro software peer-to-peer, como Skype ou BitTorrent. Já é possível aos ISPs direcionar velocidades ou larguras de bandas para diferentes tipos de aplicações.
Enfim, os pacotes de dados podem trafegar ao longo de caminhos radicalmente diferentes com base na topologia da parte de rede por meio da qual viajam. Este é o resultado inevitável de redução de custos e experimentação de novas estruturas de rede. Ao mesmo tempo que aos detentores de rede são apresentadas novas topologias, a eles também são apresentadas novas relações comerciais, conforme será melhor abordado adiante.
Nessa perspectiva, os ISPs sustentam que a priorização do tráfego beneficia o consumidor à medida que a qualidade da experiência do usuário é, cada vez mais, sensível à rápida entrega do conteúdo. E essa demanda por priorização é impulsionada pela crescente quantidade de tráfego na Internet gerada pelos usuários.
A gestão do tráfego pode ser amplamente definida como um conjunto de técnicas que podem ser utilizadas por um ISP para planejar e alocar os recursos disponíveis para atingir um desempenho ótimo para diversas classes de serviços e de usuários de uma rede. Tais técnicas incluem, muitas vezes, o uso de medidas de desempenho para definir os níveis de serviço opcionais adaptados às diferentes necessidades do usuário, e para garantir a qualidade de serviço adequado.
Em alguns momentos, para o correto funcionamento dos serviços da internet é necessário diferenciá-los de acordo com suas características técnicas. Como provimento de exemplo, um vídeo streaming ou uma chamada de videoconferência não podem ser tratadas da mesma forma que o envio de um e-mail ou o carregamento de um arquivo via FTP (File Transfer Protocol).
A principal razão suscitada por ISPs para a gestão do tráfego está amparada na importância de evitar que um pequeno número de usuários “obstrua” o acesso à Internet mediante o uso de uma parcela desproporcional da largura de banda disponível. Desta forma, os defensores do gerenciamento de tráfego apontam que as medidas de controle do fluxo de dados adotadas pelos ISPs são não apenas legítimas, mas também necessárias para manter a qualidade do serviço que garanta a todos os usuários uma experiência de navegação agradável.
Assim, a gestão do tráfego é fundamental para o bom funcionamento da Internet. Não obstante, pode criar padrões desleais de acesso ou de uso da Internet caso sua utilização seja desvirtuada sob o pretexto da necessidade de hierarquização do tráfego por tipo de conteúdo.
Não há, vale dizer, tanta polêmica acerca desta conclusão. E isso implica que, idealmente, o progressivo aumento do volume de acessos e, principalmente, da demanda de dados exigida pelas novas aplicações, seja acompanhada de esforços de expansão e inovação das redes que propiciem maior largura de banda e segurança das informações. Sem embargo, já se verificam muitos indícios de congestionamento de rede que podem suscitar comportamentos questionáveis por parte dos detentores de rede. Ao comentar Consulta Pública da Anatel nº 22/20085, a Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda (SEAE) teceu, dentre outros, os seguintes comentários (6):
Existem indícios de que as principais empresas operadoras do serviço de banda larga no Brasil utilizam a técnica conhecida como “traffic shaping” para controle de acesso ao nível de protocolo. Embora as operadoras não admitam a prática, tanto usuários como provedores de conteúdo têm registros que sugerem a prática discriminatória, principalmente contra serviços de “peer-to-peer” (P2P) e Voz sobre IP (VoIP). A revista IDG Now! em 23/04/2008, publicou matéria com o título “BrT, Oi, NET e Telefônica estão em ranking mundial de traffic shaping”. A revista Info de julho/2008 também trata da possível utilização do “traffic shaping” pelas principais operadoras de banda larga no Brasil, utilizando-se, para isso, de alguns softwares que detectam tal técnica. Segundo a Vuze, fornecedora de software P2P, a Brasil Telecom está em 9º lugar na lista dos provedores que mais interferem com o tráfego de pacotes P2P. Na mesma lista, a Telefônica está em 53º, a Oi em 58º e a NET em 66º. A empresa GVT também aparece em listas feitas por usuários de provedores suspeitos de alterar pacotes de serviços P2P.
A possibilidade de consenso, todavia, se mostra mais frágil quando discute-se a diferenciação de tráfego mediante a criação de infovias de acesso mais rápidas para determinadas aplicações de conteúdo. Ou seja, o ponto mais controverso reside na utilização de mecanismos flexíveis de preços na relação entre detentores de infraestrutura de rede e provedores de conteúdo.
Críticos da concepção mais restritiva do princípio neutralidade de rede apontam que a possibilidade de estabelecer um mercado de dois lados, a partir do estabelecimento de cobrança dos provedores de conteúdo, favorece a expansão da infraestrutura de redes de telecomunicações e, com isso, se promoveriam mais inovações ao garantir a provisão de serviços sensíveis ao tempo e à qualidade de entrega. Defendem, pois, a possibilidade dos provedores de rede cobrarem as empresas de conteúdo para oferecer vias rápidas em suas redes, desde que haja transparência (com divulgação dos benefícios oferecidos) e os acordos sejam feitos de “maneira razoável comercialmente”.
Segundo tais críticos(7), a neutralidade de rede é uma terminologia “amigável” para a imposição de regulação de preços. Em outros termos, neutralidade de rede importa o estabelecimento de regulação de preços. No caso, o preço cobrado pelo conteúdo trafegado nas redes dos detentores de infraestrutura seria zero. Dita regulação poderia reduzir substancialmente os incentivos aos investimentos, o processo de inovação e, em última instância, prejudicar os consumidores. Nessa perspectiva, os governos deveriam ponderar cuidadosamente as escolhas de política pública. Questionam: os benefícios da regulação de preços excedem seus custos?
Nessa esteira, admoestam (Evans, 2011) que a evolução da economia baseada na Internet ainda está num estágio inicial(8) o que requer cautela na imposição de regras duradouras a serem aplicadas num ecossistema incipiente. Evidentemente, é válido argumentar que as regras estabelecidas contribuiriam ao impedir uma evolução subótima da economia baseada na web. Sem embargo, seria necessária muita confiança de que tais regras favoreceriam a convergência para uma trajetória ótima ao invés de criar distorções significativas.
Noutra vertente, defensores do conceito de neutralidade de redes alegam que ao impor o tratamento de pacotes de dados com diferenciação restringe-se o potencial competitivo e a livre iniciativa. Sugerem que o sistema atual, em que todos conectados à Internet têm a mesma oportunidade de acessar aos demais, estimula o empreendedorismo e a liberdade de expressão, sendo, em parte, responsável pelo crescimento da Internet.
Permitir tratamento preferencial/diferenciado de tráfego expõe as “companhias web” emergentes a situação de desvantagem, comprometendo as inovações em serviços e aplicações on-line. Em outros termos, a força da Internet reside em sua natureza aberta. Tal característica converteu a Internet em fonte de inovação. Por tal razão, a construção da defesa da neutralidade de rede é, muitas vezes, amparada em termos tais como: “espaço unificado e não-fragmentado”, “rede das redes” e “princípio fim-a-fim”.
Em razão disso, advogam pelo estabelecimento de normativos que privilegiem uma noção mais restrititva de neutralidade de rede. Em síntese, por uma legislação que, em geral, imponha a proibição de qualquer exercício de controle sobre conteúdo que passe pela rede dos detentores de infraestrutura, bem como que impeça a cobrança por serviços de melhor qualidade de transmissão ou de qualquer tipo de priorização de tráfego calcada em discriminação de preços.
Conforme aponta Larry Lessig, um expoente defensor da neutralidade de rede, a chamada arquitetura de transmissão end-to-end (E2E)9, ou transmissão de ponta-a-ponta, foi responsável pela criação de espaço ideal para a inovação. Nessa perspectiva, tal arquitetura de rede é chave para o processo de inovação decorrente das aplicações de Internet(10), razão pela qual a arquitetura deve ser mantida(11). Advertem, assim, que o estabelecimento de direitos de propriedade relativos aos métodos de gerenciamento do tráfego teriam o condão de gerar externalidades negativas a geração do principal fruto da Internet, qual seja, a inovação.
Em contrapartida, conforme exposto, críticos da neutralidade de rede, embora acreditem na importância de incentivos adequados à inovação, sustentam que esse processo de inovação maximizaria seus benefícios aos consumidores caso respondesse a sinais de preço das plataformas de rede. Dessa forma, os inovadores levariam em conta, por exemplo, os potenciais custos de congestionamento de aplicações intensivas em largura de banda. Em outros termos, dada a dinamicidade dos mercados, é razoável que o sistema de apreçamento seja alterado e aprimorado no tempo em resposta a novas e crescentes demandas e oportunidades.
Alega-se que a neutralidade de rede oferece um forte desestímulo a ampliação e a inovação das redes, implica alocação ineficiente desses recursos, oferece saturação das infovias e substancial perda da qualidade na prestação de serviços em geral, dentre outros. Além disso, o desenvolvimento e aprimoramento de aplicações de alto valor e intensivas em tecnologia poderiam ser frustrados por uma concepção única de preço de acesso à rede. Por exemplo, a telemedicina.
É improvável que esse debate seja superado em breve. Em primeiro, não há uma maneira simples que permita comparar o impacto no processo inovativo caso fosse permitido aos detentores de infraestrutura cobrar dos provedores de conteúdo a utilização de, por exemplo, infovias expressas na rede de conexão à Internet. Em segundo, vale constatar que num contexto de rápida mudança tecnológica, torna-se complexo o estabelecimento de possíveis fronteiras de neutralidade da rede. Por último, registra-se a riqueza potencial associada à crescente economia web. Naturalmente, quando há fortunas em discussão, as empresas têm grandes incentivos para certificar-se de que as regras do jogo são úteis para desenvolver e garantir negócios rentáveis.
Do exposto, importa registrar que não constitui propósito do presente artigo concluir por um ou outro lado da controvérsia. Além de contrastar, em breve síntese, as diferentes visões sobre o tema, objeto que conforma a presente seção, a ideia aqui é, primeiramente, tão somente registrar que existe um amplo espectro de possibilidades entre os extremos que apontam para uma rede neutra e para uma rede não-neutra. Alcançado tal intento busca-se discutir como as diferentes possibilidades de inovação transitam nesse espectro.
Pois bem.
DAS DIFERENTES DIREÇÕES DO PROCESSO INOVATIVO
Conforme mencionado acima, dada a ausência de consenso sobre o significado de neutralidade de rede, torna-se uma tarefa demasiada complexa delimitar uma fronteira precisa para as práticas alinhadas ou não com esse princípio. Em razão disso, a figura abaixo representa uma tentativa no sentido de ilustrar o amplo espectro de modelos de gestão de tráfego que estão em maior ou menor medida associados à ideia do princípio de neutralidade de rede.
Acima são expostos, apenas como provimento de exemplo e sem qualquer pretensão de exaurir possibilidades, alguns mecanismos de gestão de tráfego. Não se almeja com isso estabelecer uma linha de demarcação do que seria “razoável” ou inaceitável em termos de gestão tráfego. Há uma linha tênue entre aplicar corretamente a gestão do tráfego para garantir um serviço de alta qualidade e interferir inadequadamente no tráfego de Internet para limitar as aplicações que, muitas vezes, ameaçam as próprias linhas de negócio da ISP12.
Um exemplo disso é o estabelecimento de parcerias entre detentores de infraestrutura de rede de telecomunicações e as chamadas aplicações OTTs(13). Recentemente foi noticiada na grande imprensa(14) brasileira o questionamento de modelo de negócio estabelecido entre uma prestadora de serviços de telecomunicações, a TIM Celular, e o WhatsApp, ilustrado na figura acima. Esse modelo de oferta permite enviar sem limites mensagens de texto e de voz, fotos e vídeos por meio do aplicativo, sem desconto na franquia de Internet do usuário.
No caso, o Ministério Público instaurou inquérito para apurar possível descumprimento de comando legal previsto no art. 9º15 da Lei n. 12.965, de 23/04/2014, que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil.
O exemplo pode ser emblemático da mensagem endereçada neste artigo. Isso porque a permissão ou a vedação comercial da prática citada pode apontar ou privilegiar distintos focos de inovação(16). Um argumento “pró” neutralidade de rede seria de que o estabelecimento de tal acordo comercial, ao conferir tratamento diferenciado para uma determinada aplicação OTT(17), pode inibir o surgimento de aplicações OTTs semelhantes. É o caso das chamadas “startups”(18), terminologia geralmente associada a empresas inovadoras.
De outro lado, também é possível argumentar que esse modelo de negócio é uma inovação comercial por parte das ISPs. Vedar tal modelo restringiria a geração de valor não apenas para ISPs, mas, também, para seus clientes. Além disso, acordos de priorização de tráfego entre ISPs e determinados provedores de conteúdo poderiam ser especialmente importantes para a oferta de conteúdo sensível à qualidade de transmissão. Em termos técnicos, quando o conteúdo em questão apresenta sensibilidade a aspectos como latência e jitter(19).
No que tange à disponibilidade de infraestrutura de rede para suportar inovações relacionadas com aplicações que exigem largura de banda cada vez maior, é evidente que esse movimento deve ser acompanhado do investimento necessário para suportar tal crescente tráfego. Novamente, a compreensão acerca do princípio da neutralidade de rede pode refletir visões antagônicas.
De um lado, os adeptos à normatização estrita da neutralidade de rede sustentam que essa condição favorece as inovações de aplicações e o desenvolvimento de conteúdos. Isso representa um fator de criação de demanda por mais assinaturas de acesso à Internet de banda larga que, por sua vez, aumentaria as receitas dos ISPs. Tal aumento de receitas permitiria o investimento em expansão e modernização das redes de telecomunicações. Ou seja, um círculo virtuoso seria criado a partir da preservação e aplicação da neutralidade de rede.
Noutra vertente, críticos à essa percepção apontam que uma regulamentação restritiva do princípio de neutralidade de rede afeta a relação risco/retorno esperado do investimento em redes. Em decorrência da sensibilidade ao risco, menor é a taxa de investimento, o que prejudica as oportunidades, não só dos detentores da infraestrutura, mas também daqueles que utilizam a rede. Assim, ao inviabilizar um retorno sobre o investimento sustentável compromete-se, ao final, os benefícios da inovação.
Enfim, no que diz respeito à relação entre o processo inovativo e o princípio da neutralidade de rede, objeto da discussão em tela, muitos são os ângulos pelos quais poderiam ser defendidas ou combatidas determinadas medidas de gestão do tráfego. O quadro abaixo busca, de maneira simplificada, contrastar tais pontos de vista.
O estabelecimento de marco normativo que possa lidar com todos os trade-offs envolvidos não é simples. Nesse sentido, quiçá a análise de adequação de uma ação específica em relação à gestão de tráfego por parte de um detentor de infraestrutura de rede de telecomunicações deva ser considerada em seus fatos, ou seja, no caso concreto e não por sua categorização.
CONCLUSÃO
O estabelecimento de um princípio sobre neutralidade de rede parece mais plausível que a definição de um conceito sobre esse termo que, consoante apontado, não é consensual. O marco legal brasileiro, bem como de outros países20, privilegia tal princípio. Ainda assim, as dificuldades técnicas e práticas para fazê-lo valer representam um desafio. Isso porque a interpretação do princípio em normas e regulamentos pode traduzir diferentes incentivos ao investimento e à inovação.
Nesse contexto, também é interessante o fato de que, enquanto aumenta o tráfego na Internet, muitas operadoras de telecomunicações experimentam um declínio na receita. No que concerne, especificamente, ao Serviço Móvel Pessoal, verifica-se que as receitas de voz e de mensagem de texto, que usualmente contabilizavam expressiva parcela da receita total, têm decrescido conforme os consumidores alteram suas preferências em direção aos pacotes de dados mediante os quais acessam serviços e aplicações OTTs para realizarem, inclusive, chamadas e mensagens. Os prestadores apontam que a receita da venda de pacotes de dados não necessariamente substitui a perda de receita de serviços tradicionais. O declínio na receita significa que há menos recursos para investir em infraestrutura de rede, apesar do crescente tráfego de dados.
Naturalmente, muitas são as razões pelas quais prestadores de serviços de telecomunicações investem em infraestrutura de rede, sendo esta uma decisão complexa baseada em muitos fatores e objetivos tais como: expandir a rede para aumentar a oferta de modo a atender mais consumidores; incremento de eficiência; minimizar custos operacionais e explorar economias de escala e, assim, reduzir o custo total médio de longo prazo; criar barreira à entrada com objetivo de proteger o poder de mercado e, assim, aumentar os lucros no longo prazo; evitar perdas e interrupções; manter competitividade; cumprir requisitos regulamentares de qualidade e cobertura; sinalizar aos acionistas e afetar as expectativas do mercado a respeito do fluxo de caixa futuro das empresas(21); mitigar o congestionamento de rede; dentre outros.
Para contornar esse quadro, as prestadoras já começam remodelar seus modelos de negócios à medida que as aplicações podem significar não apenas uma ameaça, mas, também, uma oportunidade, conforme exemplo mencionado neste artigo.
De qualquer sorte, fato é que o Retorno sobre o Investimento (ROI) deve superar o Custo Médio Ponderado de Capital (CMPC) incorrido. Para isso, as inovações, sejam da modelagem de ofertas de planos ou dos próprios serviços diretamente ofertados, bem como das opções de arquitetura de rede, são fundamentais.
Nesse quesito, o propósito do presente artigo foi demonstrar que a regulamentação do Marco Civil da Internet pode afetar diferentes incentivos que permeiam o processo inovativo baseado na Internet. Serve, pois, como motivação para uma análise futura sobre dos efeitos das diretrizes regulamentares sobre o mercado brasileiro, tanto no acesso e na fruição de conteúdo, quanto na disponibilidade e na qualidade de infraestrutura de redes.
1 Conceito popularizado pelo economista austríaco Joseph Schumpeter em seu livro Capitalismo, Socialismo e Democracia (1942).
2 Sigla do inglês Body for European Regulators for Electronic Communications.
3 Tradução livre de: “A literal interpretation of network neutrality, for working purposes, is the principle that all electronic communication passing through a network is treated equally. That all communication is treated equally means that it is treated independent of (i) content, (ii) application, (iii) service, (iv)
device, (v) sender address, and (vi) receiver address. Sender and receiver address implies that the treatment is independent of end user and content/application/service provider”.
4 O termo neutralidade de rede foi cunhado pelo citado pesquisador em seu artigo “Network neutrality, broadband discrimination”(2003).
5 Tratou de Proposta de Plano Geral de Atualização das Telecomunicações no Brasil (PGR).
6 Vide https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=2&cad=rja&uact=8&ved=0CC
cQFjAB&url=http%3A%2F%2Fwww.seae.fazenda.gov.br%2Fcentral-de-documentos%2Fmanifestacoes- sobre-regras- regulatorias%2F2008%2FParecer%252012_2008.pdf%2Fat_download%2Ffile&ei=1Z_GVOC6HoKvggT8hI KIDQ&usg=AFQjCNGihO3xqlndwNRZqEi3PBC_St7ugg
7 Por exemplo, Robert Hahn e Scott Wallsten.
8 Muitas revoluções econômicas baseadas na Internet devem emergir com o desenvolvimento, por exemplo, da chamada Internet das Coisas.
9 Numa tradução livre, “princípio fim-a-fim”. Concepção da rede como um simples tubo/duto que conecta aplicações inteligentes.
10 Como provimento de exemplo, Skype, Facebook, WhatsApp e a versão online do Netflix.
11 Lemley e Lessig (2000) utilizaram a noção do “princípio ponta a ponta” (“end to end principle”) para explicar as virtudes da arquitetura da Internet, a sua abertura, devendo situar nas “extremidades”
(“ends”), onde “residem” os usubrios e aplicações, a “inteligência” da rede e reservando aos protocolos e aos dutos/tubos uma função mais simples possível.
12 Por exemplo, as aplicações de vídeo, tais como Netflix, Hulu, GoogleTV, AppleTV; aplicações de voz, tais como Skype, Viber; e aplicações de mensagens, tais como WhatsApp, Viber, etc.
13 Do inglês over the top.
14 http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/01/1580980-tarifa-zero-na-telefonia-e-alvo-de- inquerito.shtml
15 Assim dispõe:
Art. 9º O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.
§ 1º A discriminação ou degradação do tráfego será regulamentada nos termos das atribuições privativas do Presidente da República previstas no inciso IV do art. 84 da Constituição Federal, para a fiel execução desta Lei, ouvidos o Comitê Gestor da Internet e a Agência Nacional de Telecomunicações, e somente poderá decorrer de:
I – requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações; e II – priorização de serviços de emergência.
§ 2º Na hipótese de discriminação ou degradação do tráfego prevista no § 1o, o responsável mencionado no caput deve:
I – abster-se de causar dano aos usuários, na forma do art. 927 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil;
II – agir com proporcionalidade, transparência e isonomia;
III – informar previamente de modo transparente, claro e suficientemente descritivo aos seus usuários sobre as práticas de gerenciamento e mitigação de tráfego adotadas, inclusive as relacionadas à segurança da rede; e
IV – oferecer serviços em condições comerciais não discriminatórias e abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais.
§ 3º Na provisão de conexão à internet, onerosa ou gratuita, bem como na transmissão, comutação ou roteamento, é vedado bloquear, monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados, respeitado o disposto neste artigo.
16 Aqui não se busca discutir outros aspectos que, apesar de grande interesse, são devidamente
abordados em outros trabalhos como, por exemplo, práticas discriminatórias e anticoncorrenciais. Restringe-se à questão da inovação.
17 Que, no caso, representa negócio significativo, uma vez que tem acesso a um número relevante de consumidores.
18 O termo passou a ser popularizado nos anos 1990, quando houve a primeira grande bolha da Internet
concentrada, em grande parte, no Vale do Silício, região da Califórnia, Estados Unidos. São exemplos emblemáticos empresas como Google, Apple Inc., Facebook, Yahoo!, Microsoft, entre outras.
19 Diz respeito à variação do atraso na transmissão sequencial de pacotes (ou variação da latência).
20 Por exemplo, Chile, Peru e Holanda.
21 É razoável supor que exista relação entre a variação do ativo permanente e a variação do valor da ação da empresa no mercado.
BIBLIOGRAFIA
ARIÑO ORTIZ, Gaspar. Diagnóstico y desafíos pendientes en las telecomunicaciones contemporáneas. In: ARIÑO ORTIZ, Gaspar. Telecomunicaciones y audiovisual: cuestiones disputadas. Granada : Comares, 2003.
BEREC, ‘Response to the European Commission’s Consultation on the Open Internet and Net Neutrality in Europe, BoR (10)42, Setembro 2010, 2-3.
EVANS, David S. Net Neutrality Regulation and the Evolution of the Internet-Economy. Organization of Economic Co-operation and Development, Outubro 2011.
HAHN, Robert & WALLSTEN, Scott. The Economics of Net Neutrality. The Berkeley Electronic Press, Junho 2006.
LEMLEY, Mark & LESSIG, Lawrence. The end of end-to-end: preserving the architecture of the Internet in the Broadband Era. (Working Paper No. 207) Berkeley : U.C. Berkeley Law and Economics School of Law, 2000. Disponível: [http://papers.ssrn.com/paper.taf?abstract_id=247737].
LESSIG, Lawrence. Coase’s first question. Regulation, 2004.
LESSIG, Lawrence. 2006. “Testimony of Larry Lessig, Hearing on Network Neutrality.” Senate Committee on Commere, Science and Tranportation. Disponível em: http://www.commerce.senate.gov/pdf/lessig-020706.pdf
PINHEIRO, Juliana S. Neutralidade de Redes, Instituições e Desenvolvimento. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Economia (IE), 2012.
PIRES, Jorge Oliveira; VASCONCELLOS, Luís Fernando Rigato; TEIXEIRA, Cleverland Prates. Neutralidade de rede: a evolução recente do debate. Biblioteca Digital Revista de Direito de Informática e Telecomunicações – RDIT, Belo Horizonte, ano 4, n.7, jul./dez.2009 Disponível em: [http://www.editoraforum.com.br/BID/bidConteudoShow.aspx?idConteudo=64624]. Acessado em: 20/01/2010, p.1.
SCHUMPETER, Joseph. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1984.
WU, Tim. Network Neutrality, Broadband Discrimination. Journal of Telecommunications and High Technology Law, Vol. 2, p. 141, 2003. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=388863>. Acesso em 6 de maio de 2014.
YOO, Christopher. Beyond network neutrality. Harvard Journal of Law end Economics. v.17, n.1, 2005.
Leonardo Euler de Morais é chefe da Assessoria Técnica da Anatel.