Medeiros: Da privatização aos OTTs

Uma retrospectiva do setor desde a privatização: as teles terão que se reinventar em períodos cada vez mais curtos.

*Por Michel Souza Medeiros, OSS/BSS SDN/NFV Solution architect

Logo após a quebra do monopólio das telecomunicações no Brasil, com a cisão da Telebrás em doze teles regionais, os grupos compradores se viram com uma grande bagunça para arrumar. Eram muitos problemas estruturais. As bases de assinantes eram incompletas e o inventário de ativos era impreciso. Nos meses que se seguiram à privatização, muitos erros aconteceram, alguns até cômicos.

No Rio de Janeiro, diversos orelhões fixados na rua e até instalados dentro de instituições públicas receberam faturas de cobrança. Ninguém sabia o que fazer com elas, e algumas até foram pagas. A Intelig informava do erro quando alguém ligava para o call center reclamando das contas endereçadas erroneamente.

Uma vez tendo a casa em ordem, as teles começaram a investir pesado em modernizar suas infraestruturas de internet. É importante lembrar que até então a internet brasileira gerida pela Embratel era baseada na Rede Nacional de Pacotes (Renpac), que suportava os acessos discados através de conexões dedicadas. A capacidade da RNP ao acessar o backbone internacional era da ordem de apenas 10 Mpbs para todo o Brasil e os usuários eram faturados em horário comercial pelo tempo de acesso, como se fosse uma ligação telefônica. Era bastante caro para o usuário médio.

Em menos de seis anos após a privatização, as teles já haviam modernizado fisicamente suas redes. Milhares de novos equipamentos de transmissão tinham sido adquiridos. Por exemplo, a Embratel investiu em altas taxas de transmissão comprando equipamentos DWDM da “finada” Nortel para os anéis de alta velocidade SDH.

Havia, portanto, chegado o momento de as teles automatizarem a operação e ganharem escala. No início e em meados dos anos 2000, o Brasil sediou os maiores projetos de OSS da América Latina. Brasil Telecom e Telemar foram as pioneiras. Esta última automatizando a esteira de diversos produtos, como as novas ofertas de internet baseadas na tecnologia ADSL para clientes residenciais. Era enorme a expectativa de vendas para o natal de 2006/2007.

Na sequência, ainda em 2006, veio o agente regulador, e as operadoras tiveram que se adequar à Resolução no 447, sobre o controle de bens reversíveis: agora os inventários de OSS precisavam interfacear com sistemas de controle contábil, como o SAP. Um ano depois veio a portabilidade com a Resolução no 460, que permitia a transferência de números entre os planos de numeração designados a cada operadora. Como consequência, foi instituída a Base
de Dados Nacional de Referência da Portabilidade (BDR).

Novos processos foram adicionados aos sistemas de workflow das teles para suportar o bilhete de portabilidade. Agentes de call center foram treinados e as operadoras precisaram conversar entre si para efetivar a mudança de cadastro. Os números de telefone migrados continuavam na base de assinantes da empresa, mas marcados como portados e indisponíveis para uso. Então, quando tudo parecia calmo e ordeiro, vieram as Over the Top (OTT) e as operadoras nunca mais tiveram sossego.

A sigla OTT é usada para designar as empresas de tecnologia que usam a estrutura de internet banda larga das operadoras para oferecer conteúdo multimídia, redes sociais ou telefonia sobre IP para seus assinantes. Apple Disney, Skype, WhatsApp, HBO Go, WarnerMedia, Facebook, Linkedin, Amazon Prime e Netflix são atualmente os exemplos mais emblemáticos. A relação das OTTs com as teles é complexa. Se por um lado elas geram demanda para as operadoras, por outro, em alguns casos, elas competem diretamente, como nos serviços de VoIP.

É que as OTTs não estão sujeitas às mesmas condições regulatórias das operadoras, o que lhes permite praticar preços mais baixos pelo mesmo serviço, quando não gratuitos. A competição tem sido desigual e tema de infindáveis discussões e debates entre os players do mercado, a sociedade civil e o agente regulador.

As operadoras viram seu produto se tornar uma commoditie enquanto as OTTs ficaram com as grandes margens. A Anatel até o momento se absteve de regulá-las, mas tem participado do debate em fóruns internacionais, como o da União Internacional de Telecomunicações (UIT) em 2017. É que a questão da regulação pode ferir princípios universais e bem aceitos como a neutralidade da rede, a liberdade, a transparência de custos e a segurança. Qualquer decisão precisa ser bem pensada.

Enquanto avançam os debates, as OTTs promovem a redução do uso da telefonia tradicional e forçam as operadoras a aumentar investimento nas redes de dados. Quando o assinante Netflix experimenta latência assistindo à programação, ele liga para sua operadora se queixando.

Em novembro de 2013, a consultoria Telco2.0 alertava em seu relatório anual que em cinco anos as teles perderiam no total até 172 bilhões de dólares, considerando nove grandes mercados (EUA, Canadá, Alemanha, França, Espanha, Itália, Reino Unido, Cingapura e Taiwan).

Eles apontavam as OTTs como o principal ofensor. A pesquisa ainda dizia ser possível reduzir no melhor caso a perda para 80 bilhões de dólares caso as teles aprimorassem seus serviços de voz e mensageria investindo em tecnologias-chave. Entretanto, a mensagem era clara: o dano era grande e impossível de ser revertido completamente.

O declínio do average revenue per user (ARPU) era o sintoma mais visível e agudo. Em parte isso se devia à comoditização dos serviços de internet. A receita das operadoras vinha se deslocando dos lucrativos serviços de voz para os mais baratos serviços de internet não determinísticos, já que os usuários começaram a usar telefonia e TV sobre dados. Estava em curso uma mudança de paradigma com efeitos significativos sobre o consumo de serviços
digitais: a evolução do modelo tradicional para redes convergentes. Os clientes parecem estar mais dispostos a remunerar melhor as empresas fornecedoras de conteúdo em vez das provedoras de conexão. Havia, portanto, um receio de que as teles se tornassem meramente fornecedoras de “tubos” por onde circulava o verdadeiro valor.

Como consequência imediata desse novo ambiente competitivo, as operadoras, acostumadas a disputar clientes e mercados entre si, observaram atônitas suas receitas serem derretidas pelos novos players do mercado, que, se antes não eram vistos como grandes competidores, agora seguramente representavam uma ameaça fatal. Sob pressão, era fundamental que as CSPs lutassem para preservar receita.

Para responder ao desafio, as teles precisavam baratear custos, enxugar a operação e implantar ciclos de inovação mais agéis e curtos. Tornou-se imprescindível direcionar os esforços para se diferenciar e oferecer serviços avançados, dinâmicos e de alto valor agregado para capturar e fidelizar o cliente, tais como modernos serviços de stream de multimedia, segurança, TV paga, além de produtos corporativos baseados em WAN que pudessem ser
ativados em horas ou minutos, em vez de semanas, e disponibilizassem funções de rede de alto valor agregado que pudessem ser rapidamente adicionadas, removidas ou atualizadas.

Grandes empresas precisam de circuitos de grande capacidade ativados em janelas específicas de tempo para sincronizar seus datacenters. O SD-WAN resolve esse problema. A resposta das teles começou com o fornecimento de conteúdo aos clientes mediante canais de TV próprios; em seguida vieram com transformação digital focando na experiência do cliente (Customer Centric), lançando plataformas digitais, consolidando canais de venda e atendimento, tirando proveito das redes sociais, etc., e seguem na direção da virtualização de funcionalidades (NFV), redes de longa distância (SD-WAN) e equipamentos (SDN), o que exige o uso intensivo de software livre e de DevOps. Entretanto, ainda há muito a explorar: tecnologias como 5G, IoT e Edge computing prometem novos e lucrativos mercados.

Está em curso, portanto, um movimento estratégico para as teles gerarem receitas adicionais. Quanto às OTTs, elas também não ficaram paradas. Algumas vêm investindo em prover acesso aos seus assinantes, como o Google Fiber, que iniciou sua operação em 2010 e oferece acesso a internet de alta velocidade sobre fibra óptica (FTTP) nos EUA.

Obviamente essa disputa é benéfica para o consumidor final, porque a competição saudável tende a baixar os preços e a lançar novas tecnologias. Com ciclos de inovação mais curtos, a expectativa é que mais e mais novidades cheguem aos clientes. O momento, portanto, é de disrupção tecnológica e transformação do mercado.

Um estudo feito pela consultoria PwC em 2019 prevê que o segmento de vídeo OTT movimentará em 2023 um valor próximo de US$ 3,6 bilhões para a América Latina e cerca de US$ 73 bilhões no mundo inteiro. Ninguém quer ficar de fora.

O futuro então, promete mais competitividade e inovação. Provavelmente as teles terão que se reinventar em períodos cada vez mais curtos. A ansiedade é grande para ver quais desafios enfrentarão as teles no Brasil e no mundo, e como os consumidores serão impactados. É esperar para ver.

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