Fábio Póvoa: Levantar capital é reabastecer o tanque
Empreender é um processo que guarda semelhança com vários outros ao longo da vida. Uma analogia comum é a de compromissos pessoais – do “casamento” de longo prazo com cofounders e investidores anjos e de venture capital. Outra são os cuidados com seu negócio e produto como se fossem um “filho“.
Eu, como bom apreciador de Fórmula 1 e fã de carteirinha do Ayrton Senna, prefiro a analogia com as corridas de alta velocidade. Em ambas, fica evidente a fundamental importância do talento em meio a um consistente trabalho em equipe, a preparação e planejamento minuciosos, o contínuo aprendizado e melhoria com erros, o ritmo de crescimento alucinado, a feroz competição com os demais times, a superação de recordes, a criação de marcas valiosíssimas, a busca pela inovação e lançamentos de modelos cada vez mais modernos, os vultosos investimentos para sustentar o sucesso nas pistas.
Mas, diante de tantas características, salta aos olhos uma que é ao mesmo tempo uma semelhança, e, para muitos empreendedores incautos, uma enorme diferença: o reabastecimento. Encher o tanque. E, na nossa versão startupeira, o fundraising, o levantamento de capital, a injeção de recursos em um novo round de investimentos.
Pergunta: o que você acharia se um piloto descesse do cockpit, enchesse o tanque após convencer os responsáveis pelo combustível e, em seguida, estufasse o peito, orgulhoso? Mais do que isso, postasse nas mídias sociais sobre esta gloriosa “reabastecida” e que agora é um “empreendedor série A”? Ou contratasse uma assessoria para escrever e depois de dar uma exclusiva para a imprensa de negócios reverberar como ele vinha performando bem, ganhando velocidade e mostrar que agora “conseguiu encher o tanque”?
Seria ridículo, não? Pois bem, dados os devidos descontos – já que não se pode generalizar – é isso o que ocorre cada vez mais frequentemente no mundo empreendedor.
Empreendedores levantam rounds e correm para atualizar o website, postar no Instagram, repercutir no portal de negócios da imprensa, atualizar o pitch deck, contar vantagens em grupos de WhatsApp. Sentem-se escolhidos, “abençoados por anjos” e tendo passado por uma espécie de rito de passagem, de validação pessoal e profissional.
Nesse processo de reabastecimento do tanque há uma espécie de Santo Graal do venture capital, a “abastecida de todas as abastecidas”, aquela que é pública e permite tocar sinos e bater martelos no pregão, e que costuma permitir colocar “combu$tível” também no próprio bolso: o IPO, initial public offer, a oferta pública inicial, em que as ações da empresa passam a ser negociadas na Bolsa de Valores.
Não raro, e talvez contagiados pelo que leem nos portais de notícias, empreendedores alardeiam seu objetivo de “levantar um dos maiores IPOs da história“. Ou se energizam ante a perspectiva de abrir o capital das suas startups por “faltar um IPO no seu curriculum“. Pense no equivalente automobilístico: o nosso piloto/empreendedor declarando seu objetivo de “fazer um dos maiores reabastecimentos da história das corridas” ou, frustrado, postar na mídia social que “faltava uma enchida de tanque no seu CV“. É vergonha alheia que fala, não é?
Por óbvio, levantar capital é um milestone importante. Ele representa uma validação do modelo de negócios, o aporte de recursos financeiros adicionais, a adição de mais braços e competências (smart além do money) no apoio à startup para continuar crescendo aceleradamente (ok, em alguns casos para sobreviver, mas mantenhamos o tom otimista!).
Noves fora as questões de ego pessoal (que julgo preponderantes) que justifiquem tal comportamento pavão, há um motivo particular pelo qual empreendedores e startups comum e erroneamente associam o levantamento de capital ou abertura na bolsa de valores com um mítico “sucesso empreendedor”: a própria dificuldade de se medir sucesso.
Num Grande Prêmio de Fórmula 1, fica fácil identificar o melhor: ele está na ponta, anda na frente dos demais, tem sua performance comparada a cada volta no circuito. As corridas têm um número de voltas conhecido e limitado. Ao final, o ganhador recebe a bandeira quadriculada, sobe no pódio, ouve o hino, agita o champanhe, pontua na tabela de classificação e corre pro abraço da equipe.
Na “corrida startupeira”, a liderança não é tão óbvia. Startups são empresas de capital fechado, sem obrigação ou mesmo interesse em publicar balanço, mostrar os números de receitas e usuários. As únicas métricas visíveis costumam ser número de likes ou seguidores, facilmente burláveis, além de não serem sinônimos de performance.
Exatamente por isso, o anúncio de uma nova rodada acaba sendo oportunidade única de se “tangibilizar” sucesso. Os aportes são anunciados com vários zeros na frente, muitas vezes consagrando a startup como um “unicórnio” (valuation > US$ 1bi), a imprensa repercute a notícia em destaque com as fotos dos empreendedores abraçados naquela pose proverbial, as redes sociais se enchem de likes, coraçõezinhos e comentários dando os parabéns.
Por trás da notícia, um misto de interesses: os investidores mostrando que têm capital para aportar (e atrair dealflow – outros founders buscando capital), os investidores de rounds anteriores calculam o markup e múltiplo do retorno, a startup vira destaque e entra no radar de fundos para rounds futuros, atrai talentos com a promessa de crescimento (e caixa para pagar salários) e ao mesmo tempo “toca terror na concorrência” por mostrar progresso. O empreendedor se sente subindo de patamar, “ungido” por ter levantado novo round e com maior bala na agulha.
Isso tudo é natural, parte da paisagem do jogo de negócios como um todo, e startups em particular. Nada contra, mas há um problema de fundo: o empreendedor-pavão que posa arrogantemente apenas por captar um round, ambicionando levantar rounds ainda maiores para mostrar que o “meu IPO é maior do que o do colega vizinho” e era a única coisa que faltava no currículo esquece que ele passa a ser referência para startupeiros.
Sim, aquele jovem estudante ou talento que aspira ser um empreendedor, sonha um dia ser um C-level e devora as notícias dos portais e mídias sociais pode pensar que o round ou o IPO são um fim em si, o objetivo maior, o ponto de chegada, o fim da corrida.
Não são.
O IPO ou um round de fundraising são apenas uma das etapas da jornada empreendedora, que torna a corrida ainda mais desafiadora, à medida que o sarrafo sobe, as expectativas de retorno aumentam, um exit exponencial vira obrigação.
A jornada empreendedora é uma corrida que não termina nunca, que se mede em clientes satisfeitos, em KPIs de crescimento sustentáveis, em receitas crescentes e lucros contábeis a médio e longo prazo, em oportunidades para disrupção de mercados e entrega de valor a todos os stakeholders – clientes, usuários, membros do time, meio ambiente, Governo, ecossistema.
Parece óbvio, mas não custa repetir: não confunda a corrida com o reabastecimento do tanque. Sorte e sucesso na largada do seu grande prêmio, empreendedor.
*Sócio e investidor líder à frente de Smart Money Ventures e professor visitante de Lean Startup & Empreendedorismo na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).