A Embrapa investe na digitalização do campo
Responsável por uma coleção êxitos na agropecuária brasileira, que permitiu tirar o país da condição de importador de alimentos básicos para a de um dos maiores produtores e exportadores mundiais, a Embrapa, empresa de pesquisa, desenvolvimento e inovação do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), tem mais um desafio pela frente. Fazer a conexão entre o mundo da agropecuária e o da economia digital e estimular o uso das tecnologias de informação e comunicação (TICs) nas diferentes cadeias da agricultura, como grãos e frutas, e da agropecuária, gado de corte e de leite, entre outros.
Nesta entrevista ao Tele.Síntese, Cleber Soares, diretor de Inovação e Tecnologia da Embrapa, relata quais as iniciativas da entidade para estimular o desenvolvimento de projetos de TICs aplicados à agropecuária por parte de startups. Dentro desse esforço, menciona a iniciativa dedicada à Internet das Coisas (IoT), já que o campo foi uma das quatro verticais escolhidas pelo Plano Nacional de IoT, ainda a ser editado.
Embora o uso das TICs ainda esteja restrito aos polos mais desenvolvidos de cada cadeia produtiva, Soares diz que ele vem se propagando de forma homogênea por todas as cadeias. E que os ganhos de produtividade são muito expressivos. O diretor da Embrapa também não tem dúvidas de que o país vai ser um exportador de produtos de TICs para a agropecuária: “Ao se inserir nesse caminho, nós podemos ser sim [um player] global, inclusive exportando tecnologias de TICs para o mundo, principalmente para o mundo tropical, porque ninguém tem no mundo a expertise e a diversidade de produção nas culturas que nós temos aqui no Brasil.”
Tele.Síntese – Como você vê o papel da Embrapa no desenvolvimento da IoT no segmento da agropecuária?
Cleber Soares – A Embrapa tem um papel importantíssimo nesse ecossistema da Internet das Coisas na agropecuária como um todo. Por quê? Porque nós temos um volume de conhecimento, de informação sobre tecnologia voltada para agricultura ímpar no Brasil, até pelo nosso protagonismo em desenvolver o cerrado brasileiro e contribuir em trazer o Brasil para uma realidade global na produção de alimentos e na oferta de alimentos.
Nós usamos como exemplo o fato de que, nos últimos trinta anos, o Brasil deixou de importar uma boa parte do alimento que consumia e, hoje, nós somos exportadores. Agora os tempos são outros e a economia digital, não só a IoT, mas a economia digital como um todo é um novo segmento econômico do qual a agricultura não pode estar desconectada. A Embrapa é uma instituição âncora que pode fazer essa conexão.
Tele.Síntese – Como fazer essa conexão?
Soares – Não vamos ser uma empresa de TI. O nosso foco é ser uma empresa de inovação para a agropecuária brasileira, mas não faz sentido as instituições de ciência e tecnologia no Brasil do ramo agrícola não estar presente e não promover transformação para uma nova era da agricultura sem usar a economia digital, sem usar a transformação digital. E a Internet das Coisas é uma dessas ferramentas, além de outras como dispositivos móveis, computação em nuvem etc.
Nós estamos olhando, avaliando nossa programação, pesquisando os resultados que a empresa tem alcançado e identificando como nós podemos usar a economia digital, as tecnologias digitais, as TICs em um sentido amplo e, especialmente, a IoT para poder fazer essa transformação.
Um exemplo prático sobre o que estamos falando. No caso da cadeia da carne, nós temos uma estrutura de confinamento de grande porte no Brasil, com a capacidade estática de 50 mil animais. Você faz uma simples movimentação no animal e ele perde em torno de 200 gramas por dia. Se você tem 50 mil animais, você está perdendo dez toneladas de carne por dia. Considerando o valor de R$ 20 o quilo, perde-se R$ 200 mil por em uma simples movimentação. Essa é a realidade na maioria das fazendas de gado do país. Mas não precisa ser assim. Nós podemos instalar sensores, captar informações e orientações para tomar decisões como em que momento exato se deve esvaziar o confinamento, fazer o movimento correto. O animal não vai perder peso e, consequentemente, o produtor não vai perder dinheiro.
É com esse olhar que a empresa esta vendo a transformação digital e a Internet das Coisas para poder promover a otimização do sistema de produção e implementar a renda do produtor.
Tele.Síntese – É inegável que o uso das TICs já está contribuindo e vai fazer avançar muito o desenvolvimento da agricultura e da pecuária brasileiras, onde a Embrapa tem papel relevante. Mas você acredita na possibilidade de desenvolvimento de tecnologia nesse segmento para exportação, um dos objetivos do Plano Nacional de IoT?
Soares – Por que não? O Brasil tem um know how e tem uma forma peculiar de fazer agricultura, de fazer pecuária e de fazer floresta plantada. Estamos vivendo um momento no Brasil, na agricultura, que muitas companhias, muitas empresas, muitos grupos que trabalham na área de TICs e computação, estão vendo agricultura como um novo negócio. A automação dos processos produtivos, seja na agricultura, seja na pecuária, seja no segmento florestal é um caminho sem volta e o Brasil tem que estar nesse caminho. Ao se inserir nesse caminho, nós podemos ser sim global, inclusive exportando tecnologias de TICs para o mundo, principalmente para o mundo tropical, porque ninguém tem no mundo a expertise e a diversidade de produção nas culturas que nós temos aqui no Brasil. É claro, algum ou outro país, como Austrália tem um pouco em pecuária, alguns países têm em frutas, alguns países têm em grãos, mas com a diversidade de produção e com o volume e qualidade tecnológica que nós temos, nenhum país no mundo tem.
Tele.Síntese – Já existem produtos de tecnologia nacional, equipamentos e softwares, para a agropecuária sendo exportados?
Soares – O Brasil já tem sim dispositivos móveis e tecnologias computacionais embarcadas em maquinas agrícolas, embarcadas em infraestrutura. Sistemas esses que foram desenvolvidos, adaptados e customizados para a situação tropical e que nós estamos exportando. Eu vou citar alguns exemplos. Na cadeia da carne, o Brasil é pioneiro em programas de melhoramento de bovinos de corte. Pegando o exemplo da raça Nelore, que é o maior volume do rebanho brasileiro — hoje temoscerca de 35 milhões de animais catalogados e registrados da raça Nelore. Nós estamos falando de touros e vacas matrizes. Ninguém no mundo tem. Imagina você, um produtor, ter acesso ao catalogo de touros com esse volume de informação? é praticamente impossível para um indivíduo conseguir consultar animal por animal. E o que o Brasil fez, por meio da Embrapa e de entidades parceiras? Nós desenvolvemos um aplicativo para dispositivo móvel que é o sumário de touros digitais. Na palma da mão, no celular do produtor, ele consegue consultar uma base de dados de 35 milhões de animais. E hoje o mundo tropical já usa essa base de dados brasileira, porque ninguém no mundo tem essa base de animais registrados.
Tele.Síntese – O que tem nessa base de dados?
Soares – Informações sobre pedigree, dados genéticos, dados produtivos da raça Nelore. Em uma plataforma como essa, nós podemos classificar os animais e ranquear por fatores como reprodução, ganho de peso, qualidade de carcaça, índice de qualidade genética, etc. Se pegar como exemplo, qualidade de carcaça, que é um tema que todo mundo busca, eu tenho um delay de menos um, ou seja, a informação que eu recupero aqui foi de ontem, o animal que entrou até o dia de ontem, informação de animal por animal. Ao buscar informação do animal número um, eu sei quem é o pai, quem é a mãe, em qual central de inseminação está, quais são os déficits esperados desse animal, o gráfico de qualidade dele dentro dessa subpopulação, o gráfico dentro da população de Nelore do Brasil inteiro, quais os índices de qualidade desse animal e qual é a situação dos seus ancestrais, se ele é filho do touro X com a vaca Y. E aqui as informações são quase infinitas, pois posso ir para a árvore genealógica do pai, e buscar os dados do avô, bisavô, da mesma forma. E isso nós estamos exportando. A Bolívia, Paraguai e Colômbia já usam nossa base de dados.
Nós temos outras plataformas como a plataforma digital, também mobile, chamada Doutor Milho, que orienta o produtor sobre dúvidas e procedimentos para toda a cadeia produtiva de milho no Brasil. Em tempo real, ele sabe, se está em uma determinada região, que tipo de semente é recomendável, quais são os procedimentos que deve fazer, que tipo de pesticida ele vai utilizar, a estratégia de colheita, enfim, o momento certo de fazer plantio, entre outras informações.
As TICs vieram para revolucionar a agricultura e a Embrapa tem o papel vital em contribuir para essa transformação. Não tenho dúvidas de que a aplicação das TICs na agricultura vão contribuir muito para otimizar a nossa produtividade. E também acredito que o Brasil vai um grande player mundial de tecnologia digital para agropecuária.
Tele.Síntese – Como a Embrapa pode apoiar ou já vem apoiando as startups? Vocês lançaram recentemente um espaço que chama SitIoT. O objetivo dessa iniciativa é estimular os pequenos parceiros tecnológicos, não só grandes multinacionais, já que que se pretende é adensar a cadeia produtiva?
Soares – A Embrapa tem tido várias ações estimulado as startups e pequenas empresas a entrar no segmento de TICs aplicadas à agricultura e pecuária e ao setor florestal. Vou citar três delas. Uma é o programa Plataforma Hackathon. Fechamos este ano com cinco rodadas no Brasil inteiro, distribuídas em vários estados, com temas estratégicos de acordo com a tendência e com a vocação dos estados. Convidamos universidades e instituições de ensino, institutos federais, universidades públicas e privadas a estimular a garotada a promover uma maratona para desenvolvimento de aplicativo para plataforma mobile, plataformas embarcadas voltadas para um tema da agricultura. Outra grande iniciativa nossa é uma plataforma chamada Ideas for Milk, uma plataforma voltada para estimular startups a apresentar tecnologias inovadoras em TICs para a cadeia da pecuária leiteira, desde o sistema de produção até a embalagem e rotulagem do leite e dos produtos lácteos. Um terceiro exemplo de iniciativa da Embrapa voltada principalmente para startups e pequenas empresas é o SitIoT. Essa iniciativa é liderada pela nossa unidade de informática e agropecuária junto com a Agrosmart, empresa voltada para a área de Internet das Coisas. Estamos fazendo um piloto no interior de São Paulo, no campo experimental da Embrapa, em Jaguariúna, voltado para desenvolver e alocar sensores na cultura do café e identificar e aprimorar os sistemas de produção, plantio, extratos culturais, manejo de poda e colheita, enfim, a logica é fazer (já está instalada) uma rede de sensores e, por meio dessa rede, otimizar o sistema de produção do café que é uma cultura forte no Brasil. Então, esses são três exemplos que evidenciam na prática como nós estamos contribuindo para alavancar as startups no segmento de TICs no Brasil.
Tele.Síntese – Nos últimos anos, tem crescido o número de empresas de TICs voltadas para agropecuária?
Soares – Muito. Não tenho noção do volume, mas é perceptível o aumento. Em iniciativas como o Ideas for Milk, a gente percebe o crescimento. Na edição deste ano, a segunda, o número de participantes dobrou. O ano passado nós tivemos algo em torno de 45 startups; este ano, tivemos mais de cem. O ano passado nós fizemos uma única hackathon, este ano fizemos cinco edições, com média de dez inscritos em cada uma. E temos ações em desenvolvimento com startups nas 46 unidades da Embrapa, assim como também nós temos parceria com grandes empresas.
Tele.Síntese – Você mencionou exemplos de uso de TICs em alguns segmentos da agropecuária. Em que segmento esse uso está mais desenvolvido?
Soares – A velocidade com que os setores e as cadeias agropecuárias estão se envolvendo com as TICs é mais ou menos uniforme. Falando de bovinos, nós temos um desenvolvimento de uso e aplicações de TICs na pecuária de corte, na pecuária de leite. Nós temos aplicação de TICs na cadeia do café, está aí o exemplo do SitIoT. na cadeia de grãos. Na cadeia de cana de açúcar, nós estamos discutindo uma parceria com uma empresa de pequeno porte que está distribuindo sensores em áreas de cana de açúcar e embarcando sensores em máquinas, desde plantadeiras automáticas até colhedeiras de cana para poder utilizar no processo produtivo. Qual o foco, pegando esse exemplo da cana? É reduzir o custo. Custo de movimentação de máquina na cultura da cana é muito grande, o combustível custa muito caro, os equipamentos são caríssimos, o custo de manutenção das máquinas é muito grande. Então, a logica é, por meio de sensores, por meio de Internet das Coisas, otimizar o circuito e a transação e circulação das máquinas nos talhões, nas áreas das usinas e, consequentemente, baixar custo. Estamos também com algumas iniciativas de uso de sensores na cadeia de frutas, na cultura de uva, por exemplo.
Então não dá para falar quem está mais atrasado e mais adiantado. Eu diria que, de modo geral, as principais cadeias (carne, leite, cana, grãos, principalmente soja e milho, e frutas) estão em um nível ainda iniciante, mas mais ou menos uniforme. É claro que isso não está espalhado no Brasil inteiro. São nichos. Mas olhando como cadeias produtivas de agropecuária, elas estão caminhando praticamente juntas.
Tele.Síntese – O que varia é a região?
Soares – Exatamente. As regiões mais desenvolvimentos em uma determinada cadeia, onde é a mais organizada, são as que contam com mais adoção de TICs. E não são só projetos. Existem ações concretas de tecnologia, inclusive já rendendo dividendos para o produtor e para empresas. Esse exemplo da cana, estou falando de uma empresa que vive disso, o ganha pão da empresa são sensores tanto no campo quanto em máquinas para otimizar o sistema de produção das usinas.
Tele.Síntese – E no caso da agricultura familiar, também há incorporação das TICs?
Soares – Sem sobra de dúvida. É claro que para agricultura de médio e grande porte a rapidez e a quantidade de tecnologias sendo incorporadas é muito maior que na agricultura familiar. Mas também esta acontecendo na agricultura familiar. Eu conheço duas startups que estão produzindo estações meteorológicas de baixíssimo custo. Uma delas importa componentes da China, da Ásia de modo geral, e monta esses componentes aqui, e a outra produz estações meteorológicas a partir de componentes brasileiros. Imagina um pequeno produtor que tem meio ou um hectare de hortaliças? Para ele é extremamente importante saber dados pluviométricos, a situação de chuva, vento, umidade e calor para saber o momento certo de irrigar. Conhcer esses elementos básicos já permite um incremento na fantástico na produção familiar. Eu estou falando de estação meteorológica que custa R$150.
Tele.Síntese – Os aplicativos também são muito usados na agricultura familiar, não é?
Soares – Sim, são muito usados. Temos aplicativos desenvolvidos pela Embrapa, desde aplicativos que levam informações básicas para o produtor, como, por exemplo, aplicativos que dão suporte para dúvidas básicas, como o programa 500 perguntas 500 respostas, onde o produtor consulta o aplicativo e tem informações em tempo real sobre sistemas de produção, dúvidas sobre determinada cultura, dúvidas sobre manejos produtivos e reprodutivos, até aplicativos mais sofisticados como o Doutor Milho, que orienta o produtor, seja ele pequeno ou grande, sobre tomada de decisões. Temos a base de dados da raça Nelore. A Embrapa desenvolveu o primeiro dispositivo vestível 100% nacional. É um colar bovino. Ele tem sensores na parte superior, usando a estratégia de IoT, que captam dados ambientais como umidade, temperatura, velocidade de vento, pressão atmosférica. E, na parte inferior, a que fica em contato com a pele do animal, um conjunto de sensores que captam dados fisiológicos: temperatura, fluxo de oxigênio e gás carbônico na corrente sanguínea do animal. A partir daí, consegue-se medir frequência respiratória, batimento cardíaco, sudorese, temperatura e, com esses parâmetros, você transborda para saber se é fêmea e está no cio, se está com febre e, de acordo com o pico de febre, traduzir se é uma doença infecciosa, bacteriana, se foi picada de cobra. Ou se é uma vaca leiteira, se ela está com estresse metabólico por excesso de consumo de milho, por exemplo. Imagina uma aplicação dessas, uma tecnologia como essa para o pequeno produtor, que às vezes não sabe a raça do animal; ou para uma empresa de seguros, cujo seguro de um cavalo ou de um touro é caríssimo; ou mesmo para um grande produtor que, ao invés de tratar todos os animais com antibiótico por conta de um pico de febre de um animal, trata apenas aquele. É dessa nova era que nós estamos falando.
Tele.Síntese – E esse aplicativo já está disponível?
Soares – Ele está em estado protótipo dentro da Embrapa. Foi desenvolvido em parceria com uma startup que nasceu dentro da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Oss estudantes saíram da universidade e montaram a startup. Estão comercializando em pequena escala e estão buscando um financiador ou um aporte de recursos para poder escalar a produção. Então você percebe a diversidade de tecnologia que nós temos?
Tele.Síntese – Você tem alguma projeção de quanto as TICs vão impactar no aumento da produtivida no campo, nos próximos anos?
Soares – Não é fácil ter essa projeção, porque em cada cadeia é um cenário distinto, mas basta pegar pegar alguns exemplos, como a da movimentação do gado confinado, que citei nesta entrevista, para se medir o impacto. E lembrar que um pequeno produtor de hortaliças, com meio hectare, se investir R$ 150 em uma mini estação metereológica também pode ter um grande incremento de produção.
A contribuição que as TICs, de modo geral, darão para a economia da agricultura será fantástica. O grande desafio é trazer a economia digital para dentro da realidade da bioeconomia.