É preciso regras claras e uniformes para moderação de redes sociais, diz professor da USP
Após o ataque de integrantes da extrema-direita instigados por Donald Trump ao Capitólio, em Washington, nos Estados Unidos, diversas redes sociais desativaram a conta do quase ex-presidente dos Estados Unidos – a posse do presidente eleito, Joe Biden, acontece dia 20 desta semana.
A medida mais drástica foi tomada pelo Twitter, que baniu Trump definitivamente de suas redes no dia 8 de janeiro, depois de alguns tuítes. O primeiro dizia: “Os 75 milhões de grandes Patriotas Americanos que votaram em mim, América primeiro e Faça América Grande de novo, irão ter uma VOZ GIGANTE no futuro. Eles não serão desrespeitados ou tratados injustamente de nenhum modo, maneira ou forma!”. Em seguida, escreveu que não iria à inauguração presidencial de Biden.
“Nós suspendemos a conta definitivamente devido ao risco de outros incitamentos à violência”, justificava a nota do Twitter. A big tech citou o episódio do Capitólio e afirmou que Trump desrespeitou sua política da Glorificação da Violência. O Facebook também suspendeu a conta do presidente temporariamente, até que ocorra a transferência de poder. Mark Zuckerberg, CEO da plataforma, afirmou que os riscos são “grandes demais”.
Em entrevista ao Tele.Síntese, Pablo Ortellado, professor de Gestão de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo, comentou que o banimento de Trump das redes constitui uma censura privada. Isso porque as regras da comunidade não foram aplicadas de maneira uniforme, com sanções sucessivas que culminassem na suspensão de sua conta.
O professor defende que as mídias sociais deixem transparentes suas regras e diretrizes, bem como a escala de sanção. Já a médio prazo, é preciso uma regulação do Poder Público sobre as plataformas, pois, argumenta, elas se transformaram em “espaço público”.
Tele.Síntese: Até pouco tempo atrás, as redes sociais se posicionavam contra a moderação de postagens de seus usuários. Mesmo o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, já quebrou diversas vezes os “Termos de Serviço”, mas só agora as redes tomaram medidas mais rígidas para controlar seu discurso. A que se deve essa mudança de postura?
Pablo Ortellado – A gente não sabe ao certo ao que se deve essa mudança. Provavelmente são dois fatores. Primeiro, a invasão do Capitólio, que foi considerada uma consequência grave da ação desse discurso. E, ao fato de o Presidente Trump ter perdido [a eleição]. Então, ele estava com muito pouco poder de retaliação sobre as plataformas
Tele.Síntese: As ameaças de revogação à Seção 230, que protege as redes de serem processadas pelas postagens dos seus usuários, está relacionada com a maior intermediação que as plataformas estão fazendo agora?
Ortellado – Na verdade, as ameaças de revogar a Seção começou com Trump. Quando as empresas começaram a endurecer a aplicação da moderação sobre Trump e trumpistas é que ele reagiu colocando em discussão a Seção 230. Essa é uma das retaliações que as empresas temiam.
Tele.Síntese: Biden também já declarou o desejo de revogar a Seção. Qual seria o interesse dele?
Ortellado – É o contrário de Trump. Enquanto o Partido Republicano temia que uma ação de moderação impactasse sobre seus membros e houvesse censura ao discurso político, há um sentimento no campo democrata de que as empresas não estão agindo o suficiente, de que elas deveriam ser mais rigorosas.
Tele.Síntese: Essa nova postura das principais redes sociais será algo apenas pontual ou o início de uma tendência maior?
Ortellado – Ainda não está claro. As ações do Twitter nesse último fim de semana sugerem que há uma mudança de postura, que o que aconteceu nos Estados Unidos não foi um parênteses, foi uma mudança definitiva. Mas precisamos esperar para ver. Se foi de fato uma mudança de postura, o próprio presidente Bolsonaro e o bolsonarismo vão sofrer um impacto tremendo aqui no Brasil.
No último fim de semana, o Twitter escondeu e rotulou uma série de publicações de bolsonaristas sobre a covid-19, inclusive, a do próprio Ministério da Saúde.
Tele.Síntese: O banimento de Trump das redes é censura ou não?
Ortellado – É censura privada, porque a regra não foi aplicada de maneira uniforme. Trump fez violações sucessivas das regras da comunidade que justificariam o banimento, mas não da maneira como foi feito. Essas regras deveriam ter sido estabelecidas lá atrás de maneira sucessiva, com sanções que culminariam em um banimento numa violação grave. Mas ele foi banido por causa de uma publicação razoavelmente inócua, depois de uma ação política fora do Twitter ter gerado grandes consequências políticas. Essa aplicação muito arbitrária me pareceu censura privada.
Tele.Síntese: O jornalista Juan Arias escreveu para um artigo no El País que “o quarto poder está nas mãos de todos por meio das redes sociais”. As mídias sociais têm potencial para fortalecer a democracia?
Ortellado – Elas têm o potencial de fortalecer a democracia e de enfraquecê-la também, depende de como funcionarem e da maneira como forem reguladas. Podem tanto proporcionar mais controle do cidadão, como podem desestabilizar as instituições democráticas.
Acho que a regulação ideal, que vamos precisar enfrentar no longo prazo, é a regulação da moderação de conteúdo. Não podemos deixar que as empresas, que são agente econômicos, movidos por interesses econômicos, moldem a moderação de conteúdo, uma vez que elas são um instrumento de fabricação padrão da sociedade.
O debate público, a esfera pública, acontece hoje principalmente nas mídias sociais. Elas decidem que vozes calar, que vozes não calar, que vozes são rotuladas, que vozes eventualmente terão alcance diminuído, que posts e contas são excluídas. Isso precisa, em alguma medida, ser objeto de regulação pública. É uma questão delicada porque envolve censura, regulação do debate público por meio de lei e interferência nas atividades econômicas das empresas. Mas ela é absolutamente necessária. Mais cedo ou mais tarde, vamos ter que entrar nela.
Tele.Síntese: O banimento de Trump do Twitter e ações nesse mesmo sentido podem afetar esse caráter de espaço público das redes sociais?
Ortellado – O que esse episódio do Trump mostrou é que empresas, embora elas tenham regras da comunidade de moderação, elas aplicam essas regras de maneira muito discricionária por dois motivos. Embora as regras sejam públicas, as diretrizes das regras não o são. A mídias sociais têm uma determinação dizendo que “não pode discurso de ódio”. Quais casos são discurso de ódio ou não? Isso são diretrizes que especificam essa regras gerais. Essas diretrizes são utilizadas pelos moderadores humanos e pelos algoritmos mas elas não são públicas.
Assim como não é pública a escala de sanção. Uma coisa é rotular, outra coisa é diminuir o alcance, outra coisa é deletar o post, outra é deletar uma conta ou suspender temporariamente uma conta e uma outra coisa é banir o usuário. Qual violação corresponde a qual sanção também não é público. Por isso, casos mais ou menos banais gerem sanções graves. E violações graves, como a gente vê no caso brasileiro de autoridades públicas, praticamente, não sofrerem sanções.
Isso porque os agentes econômicos têm medo de retaliação, eles acham que a moderação humana é muito cara, o que faz com que a esfera pública não seja regulada pelo interesse público, mas sim pelo interesse privado. No caso do Trump a gente viu como no passado ele fez publicações muito graves que passaram impunes. Ele terminou banido do Twitter por uma publicação mais ou menos inócua.
Tele.Síntese: Como acabar com a propagação da violência e do discurso de ódio nas redes sociais e ainda garantir a liberdade de expressão?
Ortellado –É preciso regras claras, transparentes, de aplicação uniforme, sem discricionariedade, que é o que está acontecendo agora.
Hoje, o que devemos exigir das mídias sociais é que as suas regras das plataformas sejam mais claras e que a aplicação delas seja uniforme, para todo mundo de maneira igual. No médio prazo, precisamos de uma regulação pública que dê parâmetros para essa regulação das plataformas, porque elas não podem fazer o que quiserem. Elas regulam o debate público, têm um poder político grande demais.